São Paulo, domingo, 27 de outubro de 1996
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O filósofo do óxido nitroso

DMITRI TYMOCZKO
DO "THE ATLANTIC MONTLY"

Continuação da pág. 5-4
Muitas destas figuras eram associadas à British Society for Psychical Research (Sociedade Britânica de Pesquisa Psíquica). Fundada em 1882, a sociedade (que ainda existe) propunha-se a testar com objetividade e olho científico relatos de um amplo leque de experiências extraordinárias não reconhecidas pelas instituições acadêmicas.
Sua esfera de ação era o que chamaríamos hoje de parapsicologia: fantasmagorias, telepatia, curas mentais espontâneas, aparição de mortos e demais ocorrências sobrenaturais. A alegação de Blood sobre a confiabilidade do óxido nitroso para desencadear a iluminação metafísica despertou a atenção da sociedade, e seus membros logo puseram mãos à obra para verificá-la ou refutá-la.
Ruína de deuses e ídolos
James sentiu-se atraído pela peculiar mistura de cautela científica e otimismo romântico da sociedade. Filho de um swedenborgiano (discípulo do teólogo sueco Swedenborg - 1688-1772), James estava eternamente suspenso entre os pólos da fé e da razão. Embora constrangido com os excessos visionários do pai, ele se mostrava escandalizado pelo descaso dessa mesma qualidade por parte dos mais reputados cientistas.
Em seu ensaio "What Psychical Research Has Accomplished" ("Qual o Resultado das Pesquisas Psíquicas"), escreveu: "Parte alguma do resíduo não-classificado (da experiência humana) tem sido tratada com tamanho menosprezo científico quanto o conjunto de fenômenos geralmente chamados místicos. A fisiologia não quer comprometer-se. A psicologia ortodoxa lhes dá as costas. A medicina os ignora ou, quando muito, numa veia anedótica, relata-lhes a história como 'efeitos da imaginação' -uma expressão de mero repúdio, cujo sentido, nesse contexto, é impossível precisar. Seja como for, tais fenômenos existem e jazem disseminados sobre a superfície da história".
James chegou a ponto de comparar esse pouco caso ao do religioso que se recusa a admitir as observações científicas que pesam contra sua causa: "Alguns de nossos positivistas nos repisam que, em meio à ruína de deuses e ídolos, uma divindade ainda ergue-se incólume -a divindade da Verdade Científica, cujo mandamento, único e supremo, preceitua: não serás um teísta". James desejava um empirismo mais radical, uma ciência despida de preconceitos, para a qual o tema da fé religiosa não fosse excluído antes de colhidas as provas. Blood, mais do que ninguém, corporificou essa atitude. Forneceu-lhe a evidência de que as afinidades empíricas e místicas poderiam ser conjugadas. Nas palavras de James, "não se pode criticar a visão de um místico -pode-se apenas deixá-la para trás ou então aceitá-la como portadora de certo peso probatório. Sentia-me incapaz de, em sã consciência, optar por uma delas, até que conheci o senhor Blood. (...) Confesso que a existência desse novo tipo de misticismo afugentou minha covardia".
O misticismo de Blood era "pluralista", pois apresentava suas extraordinárias experiências místicas simplesmente como experiências, sem encadeá-las a grandes sistemas doutrinários como o cristianismo ou a filosofia hegeliana. Ademais, ela municiava os leigos com uma chave para estas experiências, o óxido nitroso, com o qual eles poderiam testar as alegações de Blood em ambiente científico e controlado. Em suma, era um misticismo sem dogma nem conclusões -o figurino exato para um professor de Harvard com fortes pendores religiosos.
As drogas há muito são associadas à religião. Cogumelos psicodélicos foram utilizados na Sibéria há mais de 6.000 anos. O uso litúrgico da maconha entre os citas remonta a mais de 2.500 anos atrás. O culto de Dioniso entre os gregos era regado a vinho para assim suscitar visões. No Novo Mundo, o consumo religioso de cogumelos psicodélicos era amplamente difundido. Em vista dessa ampla correlação transcultural, ao menos um estudioso -R. Gordon Wasson, uma autoridade em cultos que envolvem cogumelos- avançou a tese de que o próprio impulso religioso teria origens nas drogas, como uma confusa reação a experiências intensas desencadeadas pela ingestão acidental de plantas psicoativas.
O interesse demonstrado por James na correlação entre drogas e religião era insólito pelo menos num aspecto crucial. À diferença de outros místicos usuários de tóxicos, ele não via a droga como um meio de compreender verdades religiosas superiores; ao contrário, a droga lhe fornecia o acesso a crenças que eram potencialmente falsas. Quando dos experimentos com o óxido nitroso, James admitia que a religião, embora talvez se baseasse numa falácia do ponto de vista científico, era contudo salutar ao homem. Seu valor seria de sobrevivência: a longo prazo, a religião ajuda os seres humanos a levarem uma vida rica e feliz. Em "Is Life Worth Living?" ("A Vida Vale a Pena Ser Vivida?"), ele propõe a analogia com um alpinista que se vê em apuros.
"Suponha, por exemplo, que ao escalar uma montanha você se alce a uma posição em que a única saída é um terrível salto. Tenha fé que irá realizá-lo, e seus pés serão revigorados pela idéia de sucesso. Mas desconfie de si mesmo, pense em todas as coisas adoráveis que ouviu os cientistas dizerem sobre os 'talvez', e hesitará por tanto tempo que, finalmente, todo trêmulo e debilitado, e lançando-se num momento de desespero, acabará rolando abismo abaixo."
Essa analogia, que salienta a potencial utilidade da crença em vez de sua verdade, é uma das características marcantes de James, um homem que chegou à filosofia por via da medicina e da psicologia, não da física e da lógica.
Com 28 anos completos, James sucumbiu a um período de profunda depressão. Incapaz de encontrar seu caminho por entre o determinismo de seus amigos materialistas, ele foi tomado de um forte pessimismo, não apenas sobre a possibilidade da liberdade humana num mundo de leis físicas, mas também sobre seu próprio talento para a filosofia.
A morte de um primo favorito, somada aos repetidos acessos de mal-estar físico, exacerbou-lhe a situação. Dissimulando seu estado às pessoas que o rodeavam, James considerou silenciosamente o suicídio. Nos meses seguintes, sua melancolia dissipou-se pouco a pouco. Todavia, a 30 de abril de 1870, as comportas se romperam.
"Acredito que ontem tenha padecido uma crise em minha vida. Concluí a primeira parte do segundo ensaio de Renouvier e não vi por que motivo sua definição de livre-arbítrio -'sustentar um pensamento porque assim o quero, ainda que tenha outros pensamentos'- seja por decorrência a definição de uma ilusão. De qualquer modo, assumirei por ora -até o próximo ano- que não é uma ilusão. Meu primeiro ato de livre-arbítrio será acreditar no livre-arbítrio. Até o final do ano, abster-me-ei da mera especulação & (meditação) contemplativa, nas quais tanto se apraz minha natureza, e cultivarei voluntariamente o sentido de liberdade moral por intermédio da leitura de livros que lhe sejam propícios, bem como por meio da ação."
James elegeu acreditar no livre-arbítrio não porque o tivesse como verdadeiro, mas porque lhe era necessário ao bem-estar. À maneira do alpinista às voltas com um salto de vida ou morte, ele simplesmente ludibriou sua coragem e disse a si mesmo que era livre. "Em casos como este", notou James sobre o alpinista, "(casos que integram uma classe enorme) a parte de sabedoria bem como a de coragem é acreditar naquilo que é consoante às necessidades, pois só por meio dessa crença a necessidade é satisfeita".
A carreira de James tornou evidente a progressiva generalização desse pensamento. O que de início era uma simples necessidade física -uma necessidade pessoal de acreditar no livre-arbítrio para escapar à esmagadora paralisia moral- floresceu num tipo de doutrina filosófica plenamente desabrochada. As crenças, decidiu James afinal, eram adaptações, a exemplo do pescoço da girafa ou das garras do tigre; elas eram justificáveis somente à medida que auxiliavam as pessoas a lidar com o mundo.
Acreditar no que se precisava não era mero sinal de fraqueza, como supunham alguns contemporâneos de James. Antes, era a prova de uma saudável compreensão do processo que envolve a crença. Em especial, James aduzia que não estamos obrigados a ser deterministas, ateístas ou materialistas somente porque a ciência assevera que tais sejam as doutrinas corretas e verdadeiras. A própria ciência, em última análise, devia ser avaliada em termos de uma questão moral superior: até que ponto as crenças científicas conduzem à felicidade humana?
William James usou drogas não porque suas crenças religiosas o impelissem a tanto, mas no intuito de gerar as crenças religiosas ou místicas a que de outro modo não teria acesso.
"Ao olhar em retrospecto para minhas próprias experiências (com óxido nitroso), noto que elas convergem a um tipo de visão a que não posso deixar de atribuir certo significado metafísico. Sua tônica é sempre a reconciliação. É como se os opostos do mundo, cuja contradição e conflito dão corpo a nossos problemas e dificuldades, fossem fundidos em unidade. (...) Esta é uma frase obscura, bem o sei, quando vertida em termos da lógica comum, mas sou incapaz de escapar-lhe à autoridade. Sinto como se ela devesse significar algo, algo como a própria filosofia hegeliana, caso pudéssemos concebê-la mais nitidamente. Os que têm ouvidos para ouvir, que ouçam; para mim, o sentido vivo de sua realidade vem apenas no estado místico da mente artificialmente incitado." (grifo meu)
Se tomarmos a sério esse relato e se a afirmação de Justice Roberts de que a "liberdade de acreditar" é absoluta, somos forçados a repensar o atual consenso sobre o uso religioso das drogas. Ingerir drogas é uma ação, não resta dúvida, mas ações necessárias para instigar crenças religiosas não devem ser confundidas com ações realizadas por causa de crenças religiosas que podem existir de forma independente. James precisava do óxido nitroso a fim de alcançar a crença mística. Teria ele portanto o beneplácito constitucional para usar as drogas? Até que ponto é absoluta a liberdade de acreditar?
O que é mais importante, a filosofia de James nos concede um princípio para pensar a relação entre as drogas e a religião. Do ponto de vista de James, a tolerância religiosa não representa um mero compromisso com a liberdade individual, uma simples política de não-ingerência por parte do governo em questões de verdade última, mas também uma firme decisão de abrigar certas crenças úteis, embora potencialmente falsas.
O uso de drogas, desse prisma, representa um tipo semelhante de decisão, mas no plano individual, e não social. Da mesma forma que a sociedade escolhe nutrir ou tolerar certos tipos de ilusão, abraçando pluralisticamente subculturas ateístas ou religiosas, assim também um indivíduo pode decidir -como fez James- pela divisão de sua vida em períodos de sóbria racionalidade e êxtase religioso estimulado por tóxicos. De fato, da perspectiva de James, esse é verdadeiro significado do uso das drogas -seu poder de nos permitir escolher, mesmo que de modo vago e passageiro, em que acreditar.
Em 1977, o juiz Jack Weinstein, do Estado de Nova York, escreveu:
"Nem os atavios dos mantos, nem os templos de pedra, nem uma liturgia estabelecida, nem uma literatura ou história são exigidos para passarem no teste das crenças a que a Constituição dá o nome de religião. No que respeita a nossa lei, a fé religiosa que um indivíduo sustenta por um dia sequer tem presumivelmente o direito à mesma proteção que a crença de milhões compartilhada por milhares de anos".
Tais palavras magnânimas nos fazem pensar se as crenças de James -sustentadas não por um dia, mas durante os poucos minutor tem presumivelmente o direito à mesma proteção que a crença de milhões compartilhada por milhares de anos".
Tais palavras magnânimas nos fazem pensar se as crenças de James -sustentadas não por um dia, mas durante os poucos minuto de delírio -são afiançáveis de igual caridade.
Será que nós somos capazes de enxergar a ilusão estimulada por drogas com a mesma inocência entusiástica de James? Não é fantástico o grau de autocontrole que nos propiciou a farmacologia? O Prozac nos promete trocar as cartas distribuídas por nossa química interna e alterar assim os estados de ânimo de acordo com nossas necessidades. Para James, as drogas cumpriam função semelhante: ao usar o óxido nitroso, ele alterou as crenças que lhe oferecera a ciência e foi capaz de experimentar, ainda que por um instante fugaz, as agradáveis ilusões de um visionário religioso.
As drogas, é claro, são perigosas. Elas podem destruir vidas, famílias ou até comunidades. (O próprio irmão de James, Robertson, travou uma batalha encarniçada e inútil com o alcoolismo.) A história de William James nos revela como as drogas podem também contribuir para o bem-estar humano, satisfazendo em certos casos uma autêntica necessidade religiosa. Sem sombra de dúvida, nossa cultura não está preparada para reconhecer tal fato. Nossos tribunais continuarão a negar que indivíduos como James alimentam um compulsivo interesse religioso pelas drogas. Nossos políticos continuarão a traçar falsas distinções: de um lado as agradáveis ilusões da fé religiosa, de outro as causadas pelos tóxicos; de um lado a mescalina dos indígenas americanos, de outro o óxido nitroso dos demais. Um século após William James, ainda penamos para alcançá-lo -a ele e a seus delirantes contra-sensos.

Tradução de José Marcos Macedo.

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