São Paulo, domingo, 27 de outubro de 1996
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Reunião do papa com Fidel é crítica aos EUA

TAD SZULC
DO "INTERNATIONAL PRESS SYNDICATE"

Encontro de João Paulo 2º com o presidente cubano é um pedido para que Clinton reveja as sanções a Cuba

Quando o papa João Paulo 2º receber Fidel Castro no Vaticano, no mês que vem, conforme planejado, estará ao mesmo tempo desferindo uma alfinetada no governo Bill Clinton e encorajando-o a repensar a política rígida que adota em relação a Cuba.
O encontro será o ponto culminante de anos de movimentação diplomática sigilosa do Vaticano, que já resultaram numa melhora grande das relações entre a Igreja Católica Romana e o regime comunista cubano.
Anteontem, atendendo a um convite formulado publicamente pelo governo cubano, chegou a Havana o arcebispo francês Jean-Louis Tauran, "chanceler" do Vaticano, para preparar o evento na Santa Sé.
Este primeiro e histórico encontro entre João Paulo 2º e Fidel Castro se dará durante a prevista viagem do presidente cubano a Roma, para a reunião de cúpula da Organização das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação, que terá lugar entre 13 e 17 de novembro, com a participação de chefes de Estado e de governo.
Relações diplomáticas
Como o Vaticano e Cuba nunca chegaram a romper relações diplomáticas, o protocolo permite que o papa, enquanto chefe de Estado do Vaticano, receba Castro como outro chefe de Estado, no Palácio Apostólico, à margem do programa oficial da ONU.
Os EUA serão representados em nível inferior, embora exista a possibilidade de a cúpula contar com a presença do vice-presidente Al Gore. Seja como for, o papa tem liberdade de decidir a quem deseja conceder uma audiência.
É possível que João Paulo 2º e Fidel Castro não passem mais do que 15 minutos em um encontro reservado e que a "visita de cortesia" do líder cubano não dê margem pública para nada além de fotos oficiais. Mas, em termos políticos, ela representará um sinal importante dirigido tanto aos cubanos quanto aos Estados Unidos.
Além disso, a visita deverá ajudar a reduzir o isolamento internacional de Fidel, que, na semana anterior, estará em Santiago, no Chile, para participar em pé de igualdade, pela terceira vez, da cúpula anual de chefes de Estado latino-americanos e caribenhos.
Esse fato servirá para isolar ainda mais os EUA do resto do mundo, em função de sua atitude implacavelmente hostil a Havana.
Os governos ocidentais já estão profundamente indignados com o presidente Clinton por ele ter assinado, no início do ano, uma lei (conhecida como a lei Helms-Burton) que permite a cidadãos americanos, incluindo os de origem cubana, processar empresas estrangeiras pelos investimentos que possuem em propriedades que pertenceram a eles e que foram nacionalizadas durante a Revolução Cubana e a impedir a entrada nos EUA dos executivos dessas empresas e de seus familiares.
A lei Helms-Burton é vista no exterior como uma tentativa inusitada por parte dos EUA de impor sua lei sobre a de outros países -violando a lei internacional-, e já existem planos de retaliação contra empresas americanas.
A Organização Mundial do Comércio começou a estudar a possibilidade de registrar uma queixa européia contra os Estados Unidos, visando a obter uma decisão exigindo que os norte-americanos revejam a sua política.
Empresas canadenses (o Canadá é o maior mercado de exportação dos EUA) e do México têm importantes investimentos em Cuba.
Os governos desses países acreditam que Washington também esteja violando os termos do Tratado Norte-Americano de Livre Comércio (Nafta), e a lei Helms-Burton se tornou um problema sério para a administração norte-americana em suas relações com seus aliados mais estreitos.
Clinton só assinou a polêmica legislação depois que Cuba abateu dois aviões pequenos que sobrevoavam seu litoral, vindos de Miami e pilotados por cubano-americanos, e o fez em grande medida para aplacar os eleitores da comunidade cubana, especialmente na Flórida. Mas, se for reeleito, é muito possível que a reveja.
O Vaticano, cujas negociações extremamente delicadas tiveram início muito antes da lei Helms-Burton, está interessado principalmente em ajudar a criar condições para uma transição política pacífica em Cuba no período pós-Castro, do mesmo modo que João Paulo 2º ajudou a criar tais condições na Polônia e na Europa Oriental no final dos anos 80.
Outro interesse do Vaticano é melhorar substancialmente a posição da igreja na ilha, onde a imensa maioria da população é católica, mesmo que não praticante.
Diferentemente do norte-americano, o objetivo político do Vaticano não é a derrubada de Fidel Castro pela força, e seus contatos com Havana vêm se intensificando significativamente desde 1990, com visitas "em caráter privado" de cardeais de alto escalão a Fidel e aos líderes da igreja cubana.
A viagem oficial do arcebispo Tauran representa o ponto culminante desses esforços.
Enquanto, no passado, os dignitários da Santa Sé vinham a convite do episcopado cubano (embora, naturalmente, com a concordância do regime), desta vez o anfitrião formal de Tauran é Ricardo Alarcón, presidente da Assembléia Nacional cubana e o colaborador mais estreito de Fidel na área de política externa.
O fato de Fidel Castro ser recebido por João Paulo 2º significa pura e simplesmente o reconhecimento de sua legitimidade política.
Visita do papa
O passo seguinte, muito mais importante, seria a visita do papa a Cuba, o único país latino-americano em que ainda não pôs os pés.
Se as coisas continuarem no pé em que estão, essa visita pode ocorrer em outubro de 1997, quando João Paulo 2º deverá visitar o Brasil, em sua única viagem ao hemisfério ocidental programada para o ano que vem.
Mas é claro que ela também poderá acontecer antes, se ambas as partes quiserem.
Um fato significativo é que o cardeal cubano Jaime Ortega, ele próprio profundamente envolvido nas negociações, tendo se reunido tanto com João Paulo 2º quanto com Fidel, declarou em entrevista concedida no início de outubro que "parece que já foi criado um clima favorável a uma visita próxima do Santo Padre a Cuba".
Acrescentou que, se Fidel for a Roma em novembro, "pode ocorrer um encontro com o Santo Padre".
Foi o primeiro anúncio oficial do fato feito por uma autoridade da igreja, embora os planos já tivessem sido confirmados anteriormente, em caráter reservado, em ambas as capitais. Ortega também declarou que "Cuba não deve ficar isolada".
Juntamente com o episcopado cubano e com o Vaticano, Ortega se opõe em princípio às sanções econômicas contra Cuba, especialmente ao embargo econômico imposto pela administração Kennedy 34 anos atrás, afirmando que elas não têm utilidade política e que punem a população mais do que o governo.
A Igreja Católica nos Estados Unidos adotou a mesma posição, tendo denunciado o embargo em várias ocasiões, e fornece assistência alimentícia e medicamentos aos cubanos por meio de canais da própria igreja.
Está claro, porém, que a política adotada por João Paulo 2º em relação a Cuba, incluindo seu provável encontro com Fidel no mês que vem, não visa primordialmente a causar constrangimento à administração Clinton -embora esse constrangimento seja inevitável-, e sim desempenhar um papel positivo na evolução política cubana, incluindo o fortalecimento dos direitos da igreja na ilha.
O Vaticano espera que uma visita papal subsequente à ilha ajude a promover uma "reconciliação" entre todos os cubanos -os partidários e os adversários de Fidel Castro, tanto em Cuba quanto no exterior-, desse modo facilitando a transição para a democracia, em alguma etapa.
'Reconciliação'
"Reconciliação" é o conceito e a palavra-chave usada pelo cardeal Ortega em seus frequentes exortações e comentários públicos, num momento em que o objetivo político declarado dos EUA é obter democracia em Cuba por meio da queda de Fidel Castro.
Sabe-se que, nos encontros reservados que manteve com Clinton em 1993 e 1994, João Paulo 2º realçou a necessidade de uma política mais realista -e mais branda- em relação a Cuba, para evitar o que poderia vir a se transformar numa luta sangrenta de poder pela sucessão de Fidel.
A questão intrigante é, obviamente, o que Fidel tem a ganhar fazendo concessões à igreja e reunindo-se com o papa em Roma -e, mais ainda, recebendo-o em Cuba-, idéia à qual se opôs, sem alarde, por tantos anos.
Não há dúvida de que, no passado, ele temia que a presença de João Paulo 2º pudesse desencadear manifestações contra seu regime, pondo em risco seu controle sobre Cuba. O papa só se dispôs a visitar a ilha quando Fidel afrouxou seu controle sobre a igreja.
O Vaticano e a igreja cubana acreditam que, como parte da evolução liberalizante que já está ocorrendo em Cuba -pelo menos no campo econômico, mesmo que ainda não no político-, Fidel concluiu que terá mais a ganhar se tratar a igreja como uma espécie de parceira, em lugar de vê-la como adversária ideológica.
Dentro desse contexto, uma visita papal pode ter o efeito de legitimá-lo ainda mais; não há dúvida de que Fidel passaria cada momento possível ao lado de João Paulo 2º, sendo fotografado e televisionado com ele.
Segundo sua lógica, os cubanos não ousariam se erguer contra a autoridade do pontífice.
Fidel Castro, que fez seus estudos secundários num colégio de jesuítas, lançou suas manobras cuidadosas de aproximação com a igreja em 1990, quando a queda do comunismo no Leste Europeu o privou de um apoio político e econômico importante, ameaçando-o com uma crise fatal.
O Vaticano reagiu quase imediatamente, com uma visita do cardeal Roger Etchegaray, o principal emissário diplomático do papa, para fazer uma revisão da situação. Essa primeira visita do Vaticano foi seguida por outras.
Primeiro, Fidel anulou a proibição à prática religiosa de membros do Partido Comunista e de sua participação em atividades da igreja. Quando João Paulo 2º nomeou Ortega como primeiro cardeal cubano desde a revolução de 1959, Fidel financiou a viagem de 200 católicos cubanos a Roma, para participar das cerimônias.
Depois disso, autorizou a igreja a abrir uma agência da Caritas (entidade católica de assistência humanitária) em Cuba, para distribuir alimentos e medicamentos enviados do exterior, e permitiu que Etchegaray abrisse em Cuba uma sucursal de sua Pontifícia Comissão de Justiça e Paz, para promover os direitos humanos.
O passo seguinte foi a autorização, concedida pela primeira vez desde 1959, do ingresso no país de padres e freiras estrangeiros, para lecionar em escolas paroquiais.
A virada mais importante na relação entre a igreja e o regime cubano se deu no final de agosto passado, quando o comitê central do Partido Comunista Cubano lançou um longo documento.
O texto do documento afirmava que a prática religiosa "não constitui problema para a Revolução Cubana, desde que ela promova o amor desinteressado pelo próximo, a proteção aos mais fracos ou deficientes, a unidade da família, a justiça social, as virtudes morais e da cidadania, o amor e o sacrifício pela pátria, pois aqueles que não agem de acordo com esses princípios negam não apenas sua nação, mas sua fé".
O cardeal Ortega respondeu, no mês passado, em uma homilia feita no santuário da Virgem de Cobre, a padroeira de Cuba, que "a novidade que nos faz considerar essa análise interessante é o reconhecimento aberto de que a fé religiosa implica uma missão para os cristãos e, portanto, para a igreja, na família e na comunidade humana, missão essa que identifica os crentes como verdadeiros homens e mulheres de fé".
"Se a letra e o espírito dessa análise forem observados em relação à fé religiosa", disse Ortega, "pode crescer a compreensão do que realmente são a igreja e os cristãos que a formam".
Contexto
Foi nesse contexto que o cardeal -que, em julho passado, argumentou que um pré-requisito para a visita papal a Cuba teria de ser a "aceitação normal" da religião e da igreja- declarou, em outubro passado, que já foi criado o clima necessário para a visita do papa.
A visita do arcebispo Tauran a Cuba constitui o passo seguinte nesse relacionamento.
Ainda restam problemas a resolver, notadamente a exigência, por parte da igreja, de acesso ao rádio e à televisão, e esse será um dos pontos que o arcebispo Tauran certamente deve discutir com o presidente Fidel Castro.
Mas Fidel Castro já criou seu próprio clima propício para essa nova situação, quando a televisão cubana divulgou imagens do presidente conversando com o arcebispo Beniamino Stella, o núncio papal em Cuba, e com altos representantes do clero cubano, numa recepção diplomática promovida no final de setembro.
Foi um gesto inusitado; o próximo acontecimento inusitado, para a televisão cubana e sua audiência, talvez seja a imagem de João Paulo 2º e Fidel Castro apertando as mãos no Vaticano.

O jornalista Tad Szulc foi correspondente do jornal "The New York Times" em vários países, entre eles o Brasil, onde esteve entre 1955 e 1961. Polonês naturalizado norte-americano, escreveu os livros "Papa João Paulo 2º: a Biografia" e "Fidel Castro: Um Retrato Crítico"

Tradução de Clara Allain

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