São Paulo, domingo, 27 de outubro de 1996
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Sorteios nas TVs exploram 'obsessão nacional'

FERNANDO DE BARROS E SILVA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Os cariocas costumam brincar que o programa predileto do paulistano nos fins-de-semana é arregaçar as mangas, meter os chinelos nos pés e ir lavar seu carro.
Como os cariocas sempre foram não apenas mais debochados, mas sobretudo mais cosmopolitas que os paulistanos, não é difícil perceber, mesmo para um filho da terra de Adoniran Barbosa, que a piada toca o dedo no lugar certo. Não há nada mais jeca, nada mais provinciano e pobre de espírito do que esse culto ao automóvel, que São Paulo protagoniza como ninguém.
Ocorre que a capital econômica do país, como gostamos de dizer, "exportou", via televisão, esse seu pecado de formação para o resto do país. Não há praticamente um programa de TV -do futebol aos shows de auditório- que não esteja "sorteando" um desses modelitos importados a quem se dá o trabalho de discar o número tal ao preço de R$ 3,00.
É tão ostensiva, tão acintosamente agressiva a campanha das emissoras (a Globo, diga-se logo, é exceção), que muitos jornalistas mereceriam o título de camelôs de ilusões. Aporrinham a paciência do espectador, atazanam o ouvido do pobre coitado que está vendo seu futebolzinho seguindo as estratégias mais baixas do marketing. É claro que isso é propaganda enganosa. Mas alguém reclama?
O problema já foi parar no Ministério Público da União, que abriu inquérito para apurar suspeita de sonegação fiscal e fraude no anúncio dos vencedores. A iniciativa, embora tardia, é mais do que necessária, mas não é esse o ponto que nos interessa aqui.
É engraçado notar como, desde os tempos em que Juscelino trouxe para cá as grandes montadoras, o carro vem ocupando um lugar de honra no imaginário do país em seu sonho de modernização. O carro é, mais do que qualquer outro objeto de consumo, o termômetro das nossas ilusões.
Em 1970, Paulo Maluf, então prefeito biônico, doou uma porção deles aos jogadores que trouxeram o tri mundial para o Brasil. Fernando Collor, no seu delírio modernizante (aliás muito paulista), reduziu o carro nacional à condição de carroça, lixo, velharia. Itamar Franco tentou recuperar o lado, digamos, "brejeiro" da nação ao ressuscitar o velho fusca, vendendo a ilusão de que seria um veículo "popular".
Até Fernando Henrique não ficou alheio às armadilhas dessa verdadeira "paixão nacional". Visitando uma fábrica da Volkswagen, notou que os chassis dos carros eram assinados pelos operários responsáveis por sua produção. Não teve dúvida: saudou aquele gesto, feito para maior controle da empresa sobre seus funcionários, como uma volta à individualidade do "artesão", que estaria colocando sua marca no que faz. Isso em plena era de massificação.
Como se vê, é possível contar a história da nossa modernização até hoje frustrada através da relação que viemos mantendo com esse objeto desagradável.
A atual coqueluche que tomou conta da TV (ao mesmo tempo mentirosa, caipira e regressiva) acrescenta mais um capítulo a essa novela infeliz. Não será surpresa se, num futuro remoto, algum historiador disser que na Índia se cultuavam as vacas, já no Brasil, país quase tão miserável quanto o primeiro, a população tinha o estranho hábito de ajoelhar e lamber seus carros. Amém.

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