São Paulo, segunda-feira, 28 de outubro de 1996
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Carros usados e a reforma tributária mundial

FERNANDO GABEIRA
COLUNISTA DA FOLHA

Esse Prêmio Nobel de economia mexeu com minha cabeça. E no bom sentido. Ele trata de relações econômicas em que os parceiros detêm mais ou menos informações que os outros. Trata, enfim, de uma espécie de assimetria de conhecimento sobre as variáveis da transação.
Um exemplo disso é a compra de um carro usado, operação na qual o vendedor tem mais informações do que o comprador. Ele conhece o passado do carro, suas fragilidades, sua performance.
Como resolver essa parada? Embora ainda não tenha feito um estudo um pouco mais cuidadoso do tema, posso inferir que ele terá repercussões nas reformas tributárias do mundo inteiro.
Basta que interiorize o princípio de que, em vez de só tentar investigar o que não se pode saber de imediato, a melhor tática é premiar o parceiro sempre que falar a verdade.
Isso no universo tributário poderia ser um enfoque melhor do que apenas tentar descobrir os sonegadores. Claro que ninguém recomenda o conformismo com a ignorância. Mas a disposição de premiar a verdade pode ser combinada com a idéia de uma malha fina. Mas sempre estimulando a possibilidade de uma mudança cultural.
Será que estou viajando, a partir apenas dos despachos de agências, curtas notícias de jornais? Alguma coisa me diz, intuitivamente, que esse caminho é bom, ainda que não seja uma inferência precisa do que teorizam os ganhadores do Prêmio Nobel.
Posso estar dando uma interpretação meio Poliana a mecanismos mais complexos, posso mesmo não estar entendendo nada do que dizem. Não me baseio no pouco que sei de economia, mas na possibilidade de confirmar essa tese em inúmeras outras atividades humanas.
O próprio Paul Ormerod, autor de "A Morte da Economia", admite que ela precisa se abrir para o mundo, incorporar outras variáveis, como a ecológica, por exemplo.
O mais comovente de tudo foi a morte de um dos ganhadores do Nobel. No momento mesmo em que o mundo discutia as transações assimétricas, em termos de informações, a morte, parceira que detém o definitivo dado, fez o seu lance.
Além de estimular políticas positivas de governos e gente que decide, esse Nobel de economia nos faz pensar também sobre como, de um modo geral, estamos sempre nos metendo em relações assimétricas, nunca conhecemos todas as variáveis e, de certa forma, somos condenados a tatear.
Já estou jogando para o ar a reforma tributária. A idéia de relações assimétricas ganha uma dimensão romanesca, mais instigante, se consideramos que o economista morreu poucas horas depois de receber a notícia do prêmio.
Possivelmente sabia que tinha problemas no coração, quem sabe até suspeitasse que ia morrer de um infarto. Mas como poderia prever a hora, o momento especial de sua vida em que o coração silencia?
Ninguém pode reclamar desse Nobel de economia, que pode ser tão inacessível ao homem comum quanto os concedidos nos anos anteriores.
Mas ele tem essa vantagem de nos oferecer uma tática para convivermos com nossa ignorância, sem abrir mão de ampliar os conhecimentos.
E sugere, ainda por fragmentos de jornais, uma certeza de que a morte é certa, mas pode nos surpreender em momentos de grande alegria, horas depois de se receber um Prêmio Nobel.
Ao parceiro econômico podem se oferecer vantagens. Mas a morte talvez se possa apenas negar, vivendo intensamente. Depois dela, então, nem pensar. Os dois clássicos livros dos mortos, o tibetano e o egípcio, nos dão apenas um breve roteiro.
Os tibetanos aconselham o espírito a desistir de ficar próximo da família e seguir seu caminho rumo às novas encarnações. Ainda assim, não nos livraremos de surpresas.
Talvez tenha complicado um pouco a simples compra de um carro usado. Ou, sem desmerecer ninguém, tenha colocado apreensão sobre a morte na euforia, em pessoas que jamais ganharão um Prêmio Nobel.
Mas se pelo menos esses cientistas nos reconciliarem com a possibilidade de pensar uma reforma tributária, sem morrer de tédio, já terão dado uma grande contribuição. Finalmente, sou grato a eles por terem me feito um ignorante mais convicto ainda.

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