São Paulo, domingo, 3 de novembro de 1996
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Ex-detento crê na 'máquina do crime'

ARMANDO ANTENORE
DA REPORTAGEM LOCAL

Na última segunda-feira, a Folha falou com um ex-detento que, durante a adolescência, viveu seis anos em internatos do Estado.
Ele aceitou dar entrevista sem revelar o verdadeiro nome. "Pode me chamar apenas de Nego Só."
Carioca, amigo de Roberto da Silva, mora em São Paulo há quatro décadas. Passou duas na cadeia, cumprindo pena por furtos e assaltos.
Enquanto esteve preso, estudou até completar o segundo grau. Com 49 anos, se diz regenerado e trabalha como pintor de faixas.
*
Folha - Por que você se tornou criminoso?
Nego Só - Não sei. Ninguém da minha família entrou nessa. Meu pai era marceneiro. Minha mãe, cozinheira. Só eu deslizei.
Folha - A passagem pelo internato pode ter contribuído?
Nego Só - É provável. Caí no Juizado de Menores pela primeira vez porque saí de casa para nadar e me perdi. Acabei pedindo ajuda à polícia. Dei meu endereço, mas os guardas preferiram me colocar em um internato. Fiquei três noites ali, até que minha mãe me encontrou. Tinha dez anos.
Nunca passei tanto medo. Não entendia a razão de estar no Juizado, o lugar mais temido pelas crianças daquele tempo. Pensava que só os infratores iam para lá.
À época, não sabia nada da malandragem, mas numa das três noites de internato ouvi garotos contando como tinham roubado o relógio de um "balão" (bêbado).
Quando saí dali, senti um misto de solidariedade e atração pelos meninos de rua, que todo mundo chamava de "pinta brava". Fui me aproximando de um, depois de outro, aprendi a bater carteira e não parei mais.
Folha - O que você acha de o Estado indenizar adultos que cresceram em internatos e enveredaram para a marginalidade?
Nego Só - Acho justo. O crime é um dos grandes pilares da sociedade. Você faz idéia de quantas pessoas vivem à custa dos bandidos? Se o ladrão deixasse de roubar, o que seria da polícia, dos juízes, advogados, jornalistas, assistentes sociais?
O Estado tem interesse que a máquina do crime continue funcionando. Não quer reintegrar os delinquentes. Só pensa em propaganda, em transmitir uma imagem positiva de si mesmo.
Folha - Por que nem todos os que frequentam internatos do Estado viram criminosos?
Nego Só - O que você está insinuando com essa pergunta? Que há seres humanos predispostos ao crime? Que nascem assim? Não acredito. Creio no condicionamento, na máquina que produz bandidos. Eu sei, posso falar porque era um dos dentes da engrenagem.
(AA)

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