São Paulo, domingo, 3 de novembro de 1996
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A procura da felicidade

ROBERT DARNTON

A cultura do consumo e o culto do individualismo obstruíram projetos que promovessem um mínimo de felicidade para todos

Continuação da pág. 5-9
Ao lado da despedida habitual -"Have a nice day!"-, o personagem expressa uma forma de comportamento público "de bem com a vida" que pode ser muito irritante para os europeus, adeptos do cumprimento mais descuidado, do Gauloise no canto da boca e da indolência nos cafés parisienses como estilo de auto-apresentação.
É claro que muitas outras tendências estão presentes nos padrões culturais dos EUA de hoje, e muitas delas entram em choque com o ideal de procura da felicidade. Se quisermos situar o motivo da felicidade no interior desses padrões, deveremos ter em mente três considerações.
Em primeiro lugar, os EUA sempre tiveram seu contingente de pessimistas empedernidos. A jeremiada americana chegou a bordo do Mayflower, junto com os sermões sobre a "cidade na colina", sobre a colônia de santos. Enquanto Jefferson recorria a Locke, Jonathan Edwards definia a felicidade nos seguintes termos: "A visão dos tormentos infernais exaltará a felicidade eterna dos santos. Não somente os tornará mais sensíveis à grandeza e à gratuidade da graça de Deus; mas também tornará maior sua felicidade ao tornar mais viva a consciência que têm dela e maior o seu deleite".
Os norte-americanos sempre foram ávidos consumidores de literatura anti-utópica: "1984", "A Revolução dos Bichos", "Admirável Mundo Novo", além das variedades sombrias da ficção científica. Também produziram uma vasta quantidade de literatura pessimista, de Hawthorne e Melville a T.S. Eliot, Kurt Vonnegut e John Updike. A Guerra Civil, o fim da fronteira aberta, a Grande Depressão, a geração beat e os ativistas anti-Vietnã dos anos 60 representam vários estágios da desilusão com o sonho americano.
Muitos jovens de hoje crêem antes viver num mundo de recursos limitados que de oportunidades ilimitadas; as pesquisas de opinião pública mostram que essas pessoas não esperam viver melhor que seus pais. Se já não se preocupam com a catástrofe nuclear e a Guerra Fria, por outro lado vêem retração econômica e catástrofe ecológica por toda parte. Com a epidemia da Aids, muitos deles sentem-se irritados -com os governos e com o mundo em geral-, pois a Aids representa a negação máxima da procura da felicidade como modo de vida.
Em segundo lugar, aqueles que continuam a acreditar na procura da felicidade como fim em si mesmo muitas vezes perseguem-na com um grau de seriedade que parece contraditório, isto é, adotando formas extremas de ascetismo. Fazem dieta, correm, levantam pesos, privam-se de tabaco, carne, manteiga e, em geral, de todos os prazeres que Falstaff reunia sob a rubrica de "cakes and ale" (bolos e cerveja). Com que fim? Para viver eternamente?
Até mesmo o envelhecimento tornou-se uma grande indústria, a tal ponto que o "american way of life" vai se convertendo num "american way of death" -é o que se vê na subcultura de "lares" funéreos e cemitérios bucólicos que revestem a morte de forma tão aprazível a ponto de negá-la. A maioria desses neo-ascetas mundanos acabou por transformar a velha ética protestante num novo culto do ego. A revista "Self", os apelos à modelagem de um corpo mais possante ou de uma personalidade mais afirmativa e equilibrada -tudo isso são formas de um mesmo egoísmo generalizado que parece ser o oposto das versões estóica e puritana de auto-disciplina praticadas pelos nossos "Pais Fundadores".
O ascetismo egocêntrico nos leva ao nosso terceiro ponto: John Kenneth Galbraith caracterizou-o como "riqueza privada e sordidez pública". Apesar do vale-alimentação e da Previdência Social, o Estado do Bem-estar nunca fez grandes avanços nos Estados Unidos. É bem verdade que os parques nacionais e os sistemas de educação superior pública de alguns estados abriram perspectivas de felicidade antes impensáveis para milhões de pessoas. Mas a cultura do consumo (não temos um imposto nacional sobre o consumo) e o culto do individualismo áspero (não esperamos em fila nas paradas de ônibus) obstruíram o desenvolvimento de projetos estatais voltados à promoção de um mínimo de felicidade para toda a população.
O "New Deal" de Roosevelt, lançado com o moto "happy days are here again" (os dias felizes estão de volta), não deu qualquer solução aos problemas da pobreza e do racismo -problemas que continuam a grassar no centro das nossas cidades, enquanto os indivíduos correm atrás do bem-estar em subúrbios insulados. É uma desgraça nacional, mas é também um problema mais geral, que remonta à oposição entre as versões pública e privada da idéia de felicidade, encarnadas em Voltaire e Rousseau ou, muito antes, nos epicuristas e nas várias tradições antigas. Ainda que enraizada na tradição jeffersoniana, nossa procura da felicidade compartilha as promessas e os problemas de toda a civilização ocidental.
O que fazer então? Os Leitmotiv dos padrões culturais não nos levam a quaisquer fatalismos, de modo que não vou tentar finalizar com uma grande conclusão. Permitam-me antes citar dois exemplos de procura da felicidade que encontrei recentemente. O primeiro é típico da tendência técnica, comercial e individualista. Um certo Dr. Raymond West anunciou há pouco que "a felicidade é um estetoscópio quente", ao mesmo tempo que exibia ao mundo atônito uma nova invenção: um aquecedor de estetoscópios, que tornaria mais agradáveis os "check-ups" médicos, ao abolir para sempre a terrível sensação de "cubos de gelo nas costas".
O segundo exemplo é menos trivial, e expressa a meta coletiva da República americana, tal como Jefferson originalmente a definira. Ele consta do discurso de posse do presidente Clinton, em 1993: "Quando nossos fundadores ousadamente manifestaram suas intenções ao Criador e declararam a independência deste país ao mundo, sabiam que, se quisessem perdurar, os Estados Unidos teriam que mudar. Não a mudança pela mudança, mas a mudança para preservar os ideais americanos -a vida, a liberdade e a procura da felicidade".
Nobres palavras. Mas Clinton faria bem em pensar também em Washington -o estadista e a vítima de dores de dente. Imagine Washington num banquete no jardim de Cândido. Se quisermos reunir as duas vias de procura da felicidade -a individual e a social-, deveríamos seguir o exemplo de Washington, cerrando as mandíbulas, rilhando os dentes, engolindo a dor e dedicando-nos ao bem-estar público. Tal é a visão de um cidadão norte-americano num momento em que o Estado do Bem-estar parece tão sitiado quanto Monticello.

Tradução de Samuel Titan Jr.

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