São Paulo, domingo, 3 de novembro de 1996
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Felicidade à brasileira

GILBERTO VELHO
ESPECIAL PARA A FOLHA

As relações entre o bem-estar individual e a política são historicamente complexas e sociologicamente ambíguas. Variam, num amplo contínuo, desde uma visão em que aparecem como indissociáveis até outra, em que são percebidos como domínios distintos e independentes. Entre outras variáveis, está em jogo a representação do indivíduo e de sua subjetividade. A dialética entre os mundos externo e objetivo e interno e subjetivo tem na trajetória e identidade individuais a explicitação de suas contradições e riqueza.
A independência americana é, como mostra Darnton, entre outros, um marco fundamental na história moderna para o desenvolvimento de uma democracia política que tem nos indivíduos cidadãos seus autores e atores principais. Por sua vez, a sociedade brasileira, se, por um lado, participa de uma tradição ocidental moderno-contemporânea, por outro tem características próprias, com direções e interpretações peculiares.
Possivelmente não tenhamos um equivalente ao "american way of life". Mas, quando se fala em cultura brasileira, de algum modo estabelecemos fronteiras simbólicas em torno de um tipo de identidade nacional. Numa época em que a globalização parece ter se tornado em tema dominante, pode soar estranho aos modernizantes mais frenéticos a insistência de alguns cientistas sociais em sublinhar a singularidade de uma sociedade, ao invés de valorizar a interdependência de uma já de há muito anunciada aldeia global.
Isso nos leva, retomando temas caros da história da antropologia, a nos debruçar sobre as diferenças entre o valor indivíduo nas sociedades brasileira e norte-americana, particularmente no que se refere à problemática da felicidade.
Já existe uma bibliografia respeitável, de Vianna Moog a Roberto da Matta, em que são estabelecidas comparações mais ou menos sistemáticas entre Brasil e EUA. Para os meus propósitos importa, sobretudo, frisar o pouco espaço culturalmente existente na sociedade brasileira para a emergência da noção de cidadania associada à representação de um indivíduo sujeito. Isto se deve à predominância de um modelo hierárquico organizador da vida social, que valoriza e legitima as diferenças entre as categorias, dando, com isso, peso desigual aos indivíduos, englobados por uma lógica relacional.
Historicamente, o Brasil viveu mais de 300 anos sob a égide da monarquia absolutista portuguesa, onde os indivíduos eram antes e acima de tudo vassalos da coroa. Obviamente, existiam as distinções hierárquicas entre estes, das quais a mais significativa era aquela entre senhores e escravos. O nosso processo de independência, como se sabe, ao contrário dos Estados Unidos, não significou uma valorização efetiva da noção iluminista de cidadania. Esta se restringia a pequenos grupos insulados dentro de uma sociedade envolvente regida pela hierarquia.
O Império e posteriormente a República do Brasil, embora com variações de matiz, deram continuidade ao modelo político ancorado a uma hierarquia sociocultural abrangente. As relações entre cidadania, república e monarquia também estimulam inesgotáveis reflexões, mas cabe salientar que o sistema republicano nos Estados Unidos esteve desde o início estreitamente colado às noções de liberdade e responsabilidade individuais, valores constitutivos daquela sociedade. A importância do protestantismo, o peso do livre arbítrio e da iniciativa individual, a rejeição vigorosa da monarquia absolutista e de sua interferência na vida privada, são algumas das variáveis fundamentais que valorizam não só o indivíduo e seus direitos públicos, mas também as suas características e peculiaridades subjetivas. Nesse sentido, o direito individual à felicidade como princípio político é expressão não só de um individualismo genérico, mas de uma percepção específica do valor indivíduo em sua dimensão mais interna.
Não se afirma, com isso, a inexistência de ideologias e valores individualistas na história da sociedade brasileira, mas sim o seu caráter mais subordinado e localizado, diante do universo predominantemente hierárquico. Assim, o desenvolvimento do capitalismo se processa através de relações não-lineares e constantemente contraditórias com o Estado, com o comércio internacional, como no caso do tráfico negreiro, e com o sistema de "plantation". Diversos autores aqui também têm preciosas contribuições, entre os quais cabe mencionar Caio Prado Jr., Celso Furtado, Raymundo Faoro, Fernando Novais e, mais recentemente, Luis Felipe de Alencastro. O empreendedor no capitalismo brasileiro tem, desde sempre, laços fundamentais com o poder público e está frequentemente associado a modos de produção aparentemente antagônicos, como o escravismo.
Esse hibridismo não é exclusivo ao Brasil, mas aqui aparece de modo particularmente dramático, combinando valores supostamente modernos com formas tradicionais de dominação e exploração. Os indivíduos, dentro desse quadro, expressam em suas trajetórias as peculiaridades desse sistema heterogêneo e, ao mesmo tempo, dinâmico. Entre os cientistas sociais que se voltaram para a dimensão afetiva e emotiva individual na sociedade brasileira vale citar Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Holanda. Existem fortes pontos de contato entre os dois, tanto em termos biográficos de relacionamento pessoal, como de afinidades temáticas, a par de óbvias diferenças de perspectiva e interesse. De qualquer forma, fica ressaltada a importância de uma vertente afetivo-sexual na caracterização de uma cultura ou modo de vida ("way of life"?) brasileiro.
Outro ponto importante é a relativização de um desencantamento do mundo racionalista modernizante. Nesse contexto, a importância da vida religiosa, sobretudo no que tange às religiões e cultos de transe e possessão em diferentes setores e segmentos sociais, tem sido analisada desde Nina Rodrigues, passando por Artur Ramos, René Ribeiro, Roger Bastide, Edson Carneiro, Cândido Procópio de Camargo até, contemporaneamente, Peter Fry, Yvonne Maggie, Patrícia Birman, Luis Mott, Laura de Mello e Souza, Maria Laura Cavalcanti, Reginaldo Prandi etc.
Fica sublinhada a atualidade permanente do que tradicionalmente foi caracterizado como "pensamento mágico", "irracionalismo", "crendices" e "superstições". Ou seja, boa parte dos brasileiros acredita em espíritos, transe, possessão e mantém permanentes preocupação e relação com o sobrenatural. Este tem um papel fundamental no processo de construção social da realidade e, especificamente, no destino e trajetória individuais. O bem-estar, o sucesso e a felicidade dependem de diversas variáveis, como a família e o trabalho, mas o sobrenatural ocupa um espaço determinante. Assim, o indivíduo depende, além dos seus méritos e capacidades, de uma relação bem sucedida com santos, guias, orixás e mediadores, como pais e mães de santo, pastores, padres e sacerdotes em geral.
Outro fenômeno também privilegiado em análises sobre Brasil, como nos trabalhos de Roberto da Matta, tem sido o carnaval em seus múltiplos aspectos. Seria um domínio particularmente expressivo da cultura brasileira com mecanismos de inversão e alteração da hierarquia cotidiana. Por outro lado, criaria contextos de relativa liberdade individual, em um período de tempo limitado, com ênfase na área erótica-amorosa.
Mais recentemente, sobretudo, a partir da Segunda Guerra, assistimos a um tipo de revolução individualista na sociedade brasileira, tendo como foco inicial o universo de camadas médias superiores urbanas, espraiando-se progressivamente por outros setores. Processos internos à sociedade nacional associados a mudanças, com novas influências no relacionamento com o mundo exterior, afetaram as representações de indivíduo e subjetividade. Saía-se de mais um período explicitamente autoritário com o final do Estado Novo. Particularmente no governo Juscelino viveu-se o que já se convencionou chamar de plenitude democrática, que seria interrompida pelo regime militar instaurado em 1964. No período pós-guerra, ao lado do desenvolvimento acelerado da urbanização e da cultura de massas, sobretudo com o rádio e a televisão, assistimos a uma complexificação e enriquecimento da vida intelectual e universitária. Assim, associadas a uma valorização política mais enfática sobre os direitos individuais, densenvolvem-se discussões e idéias influenciadas pelo marxismo, existencialismo e psicanálise. Sem dúvida, podemos identificar antecedentes desse movimento, pelo menos desde o final da Primeira Guerra, sobretudo com o modernismo.
As vertentes da questão social e da problemática individual ora se combinam, ora se afastam, dependendo da interpretação dominante. Mas, de qualquer forma, a questão da subjetividade e de suas relações com o mundo externo vão ser sublinhadas através do fenômeno da psicologização da sociedade, tema analisado, por exemplo, no trabalho de Sérvulo Figueira. A esquerda e os setores progressistas em geral oscilarão, particularmente durante o regime militar, na sua atenção à problemática da felicidade individual. A contracultura, o tropicalismo e a psicanálise constituirão uma alternativa interpretativa paralela à visão política mais diretamente vinculada ao marxismo. Sem dúvida, isto não deve ser entendido de um modo monolítico, mas sim como um processo em que diferentes atores transitam entre distintos modos de interpretação sem que se caracterizem fronteiras rígidas.
O gênero que melhor expressa a riqueza da crescente preocupação com a problemática individual é a novela. Embora suas raízes sejam mais antigas, a sua importância sociológica se multiplica por meio da televisão. Nela, com sua reconhecida heterogeneidade, retratam-se os dramas das trajetórias individuais em uma época de grandes transformações.
Alguns autores serão mais explícitos no que se refere aos problemas sociais do país. Outros deixarão entre parênteses ou ignorarão temas mais gerais, fixando-se no jogo amoroso de seus heróis e heroínas. Mas pode-se assinalar uma tendência de buscar uma áurea medida entre uma narrativa social e o foco privilegiado sobre destinos individuais. A felicidade aparece como algo atingível por qualquer pessoa, sendo quase que um direito explicitado nas tramas. Os obstáculos, sejam quais forem, devem ser enfrentados e superados. Reconhece-se, cada vez mais, em uma opção pluralista democrática, a heterogeneidade de indivíduos e estilos de vida, com o desenvolvimento de galerias de personagens mais amplas e diversificadas. A crítica de costumes, muitas vezes associada a uma apreciável imaginação sociológica, tem como centro e razão de ser os sentimentos e emoções mais profundos dos indivíduos.
Assim, creio que a análise das novelas seja uma das entradas mais férteis para uma melhor compreensão dos valores brasileiros contemporâneos, sobretudo no que se refere à relação indivíduo e sociedade no cruzamento entre os domínios do público e do privado. A felicidade individual é o tema básico recorrente e organizador de todas as tramas e é a medida universal da qualidade da vida social.

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