São Paulo, domingo, 3 de novembro de 1996
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Um laboratório infernal

MANUEL DA COSTA PINTO
ESPECIAL PARA A FOLHA

É difícil não pensar no Foucault de "História da Loucura" ao ler "O Século dos Manicômios", de Isaias Pessotti -mesmo se levarmos em conta os diferentes objetivos e perspectivas das duas obras.
Em seu livro de 1961, o filósofo francês pintara, sobre os muros dos hospícios, um afresco apocalíptico da racionalidade ocidental, fazendo-nos observar como o confinamento dos loucos em asilos psiquiátricos, a partir do século 17, apartou definitivamente razão e desrazão, estabelecendo o controle minucioso das ações e pensamentos dos alienados pelo saber médico.
Pessotti, por sua vez, prefere fazer uma história do enfrentamento entre as concepções organicistas e mentalista da loucura -enfrentamento que tem por cenário ideal os manicômios do século 19 e que ele havia abordado de modo mais genérico em seu livro anterior, "A Loucura e as Épocas" (Editora 34).
Em Foucault, o paciente é objeto do saber e expressa a marcha triunfal da razão sobre o Outro, o diverso; o manicômio é o espaço macabro em que se expurga aquilo que a nega. Para Pessotti, o louco é apenas o "figurante" de um combate científico; a realidade da loucura jamais é contestada em sua evidência psiquiátrica: o que existe são maneiras diversas de conceber a alienação e, portanto, de tratá-la.
Por que então recordar Foucault a propósito de "O Século dos Manicômios"? Não seria mais fácil entender o livro de Pessotti à luz dos inúmeros tratados psiquiátricos que ele cita em seu texto? Entretanto, para o leitor mais familiarizado com o pensamento filosófico e sociológico do que com a literatura médica, o livro de Pessotti tem um importante efeito secundário: ele rompe nosso hábito de tornar cada fenômeno uma metáfora, de ver o não-dito sob a superfície das palavras -um hábito que, no caso da loucura, encontra sua expressão rematada no livro de Foucault (em que pesem as rejeições posteriores do filósofo à "interpretação" como imposição de um sentido latente à opacidade do que é manifesto).
Pessotti é filósofo, leciona psicologia na Faculdade de Medicina da USP em Ribeirão Preto e, não bastasse, é o talentoso ficcionista de "Aqueles Cães Malditos de Arquelau" e "O Manuscrito de Mediavilla". Não deixa de ser surpreendente, portanto, que "O Século dos Manicômios" nos ofereça uma descrição estritamente factual das diversas correntes da psiquiatria.
Essa descrição muitas vezes leva em conta correspondências conceituais entre épocas e autores, mas o faz segundo critérios da "influência".
Assim, por exemplo, as teorias do filósofo inglês John Locke sobre o papel das sensações como motor do pensamento são, segundo Pessotti, a "base ideológica para uma psicopatologia nova", conferindo um estatuto científico para a mente e permitindo considerar a loucura uma lesão do intelecto, sem cair em explicações "metafísicas" ou "demonológicas" para a alienação.
Em nenhum momento, porém, encontramos aqui uma investigação do saber científico como epifenômeno de um discurso subterrâneo e impessoal, que cria nosso domínio do possível, condicionando e produzindo nossas ações concretas nos termos de uma ideologia (segundo a leitura do marxismo vulgar), de um poder-saber (na versão mais sofisticada de Foucault), ou de performances linguísticas que conformam nossa sensibilidade psíquica e nossas práticas sociais (caso da filosofia neopragmática).
Mas esse não é um "defeito" da proposta teórica de Pessotti. De certa forma, ao libertar-se dessa compulsão analítica, ele consegue fazer uma história muito mais nuançada da loucura e do saber psicopatológico.
Vemos em "O Século dos Manicômios", por exemplo, que a apropriação da loucura pela medicina foi não apenas uma reação à mitologia cristã; afinal, a Igreja também se utilizou de seus critérios nosográficos para distinguir um delírio patológico de um êxtase místico -evitando a canonização de algum maluco...
A nosografia é, aliás, a palavra-chave de "O Século dos Manicômios", pois é a partir das diferentes descrições das doenças e das atribuições etiológicas de suas causas que se delimitam as práticas médicas. Se nos séculos 17 e 18 predominam doutrinas estritamente organicistas sobre a loucura (como a iatroquímica, a pneumática e a iatromecânica), não existe uma distinção muito clara entre o doente mental e a vítima de uma doença convencional. O que não impede que o alienado seja identificado ao doente incurável e relegado aos lugares mais inóspitos dos hospitais.
Apenas no século 19 se consolida a prática (ocasional até então) de criar espaços exclusivos para o tratamento da patologia mental. Pessotti vê no surgimento dos manicômios a contrapartida institucional da teoria de Pinel -que grosso modo, conserva a identificação da loucura com o delírio, mas enxerga suas causas em distúrbios ou excessos das paixões, que acabam por provocar lesões no intelecto e na vontade.
A psicopatologia assume então uma feição humanista: o manicômio deverá corrigir as paixões do alienado. Se os filósofos iluministas queriam corrigir os "moeurs", reformando a sociedade, o tratamento "moral" de Pinel -cujo gesto de libertar os loucos das correntes tornou-se um dos emblemas da Revolução Francesa- deverá resgatar a racionalidade residual que ainda permite tratar e considerar o louco como um ser humano.
Pessotti não é, todavia, um investigador ingênuo. O otimismo pineliano é apenas um entreato para uma ciência médica cuja incapacidade de provar suas crenças organicistas cedera espaço para concepções mentalistas. No final do século 19, porém, a ineficácia do tratamento faz do manicômio um laboratório infernal para novas e igualmente ineficazes experiências corretivas, como a máquina rotatória ou, no início deste século, a malarioterapia. "Toda a parafernália violenta da terapêutica física, construída pela medicina oitocentista para enfrentar a loucura, demonstra muito mais que prepotência, sua indisfarçável impotência", conclui ele.
"O Século dos Manicômios" delineia, portanto, o conflito que hoje opõe de maneira radical as teorias psicológicas e psiquiátricas da loucura, com desdobramentos como o movimento antimanicomial do italiano Franco Basaglia ou a psicanálise -que bem poderiam ser o objeto de um próximo livro. Com a vantagem, para quem busca uma postura teórica desapaixonada, de que Pessotti respeita as noções de conhecimento de cada discurso, seus sucessos e fracassos, sem descartar a visão humanista em nome de um positivismo científico ou transformar a eficácia médica num avatar do racionalismo tout court.

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