São Paulo, domingo, 3 de novembro de 1996
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A invenção da crítica literária

HAROLD BLOOM
ESPECIAL PARA A FOLHA

Qualquer estudante de literatura hoje sabe que foram os gregos que inventaram a teoria e a crítica literária. Mas, quando se compara um crítico moderno com seus predecessores da antiguidade, nossa sensação é de espanto. D.A. Russel, autor de um valioso livro sobre o assunto, "Criticism in Antiquity" ("A Crítica na Antiguidade"), define a condição paradoxal de se ler os críticos antigos:
"O que não se compreende são os julgamentos de valor desses críticos. Parecem-nos, muitas vezes, inadequados e insatisfatórios, se comparados às nossas próprias respostas aos mesmos textos. Mas não se pode deixar de reconhecer que os gregos e os romanos deviam saber, afinal, o que era melhor, já que é da linguagem e da cultura deles que estavam falando".
Esse paradoxo dá evidência da grande distância que nos separa dos antigos, uma distância que nem o estudo prolongado é capaz de vencer totalmente. O que chamamos de "classicismo", seja em referência a uma tradição literária, uma postura crítica, ou uma profissão acadêmica, não passa de uma interpretação particular da cultura grega antiga -interpretação essa posta em questão por Friedrich Nietzsche, filólogo clássico, genealogista da moral e pensador crucial para a arte moderna da interpretação. Nietzsche jamais se cansou de especular sobre os gregos, e suas inquietações nos ajudam a entender não apenas o nosso estranhamento e perplexidade diante do juízo estético dos antigos, mas também o progressivo estranhamento e perplexidade dos gregos diante de si mesmos:
"Aos poucos, tudo o que há de genuinamente helênico torna-se responsável pela decadência... O declínio da Grécia pode ser compreendido como uma objeção às fundações da cultura helênica: equívoco primário dos filósofos. Conclusão: o mundo grego acaba. Motivo: Homero, os mitos, a moralidade antiga etc". ("A Vontade de Potência", liv. 2, par. 427.)
Aqui, como em outros pontos, fica implícita a visão de Nietzsche da cultura grega como essencialmente uma cultura agonística, de oposição e luta, em contraste com a tradição hebraica e seu sentido fundamental de piedade (honrar pai e mãe). Nietzsche provavelmente deve sua noção do agon grego a seu colega e amigo, o historiador Jakob Burckhardt, mas em sua elaboração dessa idéia foi mais longe ainda do que ele, ao concentrar sua atenção sobre o grande combate entre Platão e Homero (ou Sócrates e Homero), pela mente de Atenas. O que para Nietzsche ficava faltando nos estudos de filologia clássica de sua época continua faltando até hoje no trabalho dos especialistas: o sentido agudo de que o espírito grego só podia se manifestar na luta, na competição pelo primeiro lugar, seja na política, na poesia, ou no conhecimento.
Em certo sentido, toda crítica literária da Antiguidade tem origem no agon de Platão com Homero e pode ser vista, assim, como uma leitura crítica de Homero -sobre cujos poemas assentava-se inteiramente o que os romanos, mais tarde, chamaram de "cultura" grega. A "Ilíada" é o texto clássico fundamental, análogo em função e estatura ao que nós chamamos de "Gênese", "Êxodo" e "Números", na Bíblia hebraica. Há pouco em comum entre a literatura grega clássica e a hebraica, mas uma e outra compartilham o fato de ter um precursor tremendo: o autor, ou último autor da "Ilíada", conhecido na tradição grega como Homero, e o "J", ou "Javista", da exegese bíblica moderna.
A "Ilíada" e as passagens narrativas mais antigas da Bíblia hebraica constituem os textos da autoridade por excelência, histórias que ampliam e dominam sociedades. Essa analogia entre Homero e o Javista é muito limitada, pois não há maior contraste humano e moral, na literatura, do que o que existe entre Aquiles e Jacó, entre o matador heróico de Heitor e o sagacíssimo duelista que enfrenta a divindade desconhecida, até que o novo nome, Israel, lhe seja concedido como uma bênção. O autor da "Ilíada" e o contador das histórias de Jacó são tão irreconciliáveis quanto as tradições a que deram origem. Não existe uma única modalidade cognitiva no Ocidente que não venha, em última instância, dos gregos, mas a moralidade ocidental permanece, em certo sentido, cristã; e a cristandade, em suas origens, era uma heresia judaica. A grandeza da literatura ocidental tem algo a ver com essa enorme divisão na consciência do Ocidente, a sensação perpétua de que a razão vai para um lado, enquanto o espírito se move na direção contrária.
O estudo da literatura no Ocidente, porém, só teve antecedentes gregos, até Santo Agostinho começar a formulação de uma retórica cristã. Suspeito ser essa a fonte de nossa dificuldade em compreender a teoria e a crítica literária clássica, que estranhamente nos parece mais difícil do que a épica, a lírica e a trágica. A expulsão dos poetas da "República" de Platão, a noção sutil de mímese, ou "imitação da realidade" em Aristóteles e as meditações do assim chamado "Longino" sobre o sublime parecem mais longe de críticos como Samuel Johnson (séc. 18) e William Hazlit (séc. 19) do que Homero de Milton, ou Ésquilo de Shakespeare. Uma ode de Píndaro e outra de Wordsworth estão a majestosas léguas de distância, mas isto não é nada comparado aos anos-luz que separam Horácio e Kenneth Burke como teóricos da poesia, ou Aristóteles e Walter Benjamin como estudiosos da tragédia.
Nada seria mais estranho do que procurar fontes hebraicas antigas da teoria e crítica literária. Mas talvez seja mais curioso do que se imagina buscar as origens do pensamento literário ocidental em Platão e Aristóteles. Isto é assim, em parte, porque a origem verdadeira da crítica estética não está na filosofia, mas na própria poesia, nas farsas ferozes e extravagantes sátiras escritas por Aristófanes, em suas comédias.
Valho-me aqui do livro de Bruno Snell, "A Descoberta da Mente: Origens Gregas do Pensamento Europeu", talvez o mais profundo estudo dos processos de pensamento na tradição clássica grega desde Burckhardt e Nietzsche. Snell pinta um Homero cujo padrão de julgamento é "a quantidade, não a intensidade" e que ainda não sabe o que é a ambivalência, mas cuja mente, por mais arcaica, ainda não é só "um campo de batalha entre forças arbitrárias e potências estranhas", pois tem sua coerência garantida pela mitologia olímpica. Tal coerência, muito alterada, preserva-se nas tragédias de Ésquilo, que se concentrava sobre a vontade e decisão dos indivíduos, mas sem deixar de prestar honra aos deuses (muito embora seu Zeus seja bem mais abstrato e distante que o de Homero).
Eurípedes, à sombra de Ésquilo, toma o desvio de uma arte realista e racional, na qual a mitologia do Olimpo já deixou de ser algo em que se possa acreditar, por mais abstrata que seja. A crítica estética, no sentido que hoje damos à palavra, nasce com a reação violenta de Aristófanes contra o modernismo de Eurípedes. A lição importantíssima de Snell foi demonstrar que Platão (como Aristóteles, depois) não percebe a origem opositiva de uma crítica estética propriamente dita, nesta preferência marcada de Aristófanes por Ésquilo, em detrimento do "decadente" Eurípides.
A preferência do satirista por uma arte moral, religiosa e idealista seria invertida completamente por uma extensa linhagem de estetas, desde o alexandrino Calímaco até Oscar Wilde. É uma ironia wildeana, não aristofânica, que a postura do crítico estético -a visão de um Walter Pater (no séc. 19)- tenha sido inventada por Aristófanes, como advogado do diabo: a atitude poética do escandaloso "Eurípedes", em "As Rãs". Este é um paradoxo tão insólito e tão dialético que caberia se perguntar se uma consciência tão sutil como a de Aristófanes já não o teria, de alguma forma, antecipado.
Snell, que toma o partido de Eurípedes, vê em Aristófanes um estudioso das nostalgias e, portanto, uma espécie de primeiro Último Romântico: "A tragédia grega deu seu último sopro com Eurípedes e é Sócrates quem carrega a culpa de sua morte. Mas ao mesmo tempo ele fez nascer algo de novo: a filosofia grega. Aristófanes tinha razão, mas não devemos nos enganar sobre ele. Ele é um romântico e reacionário, que se recusa a abandonar algo que já chegou a seu ponto mais alto e, ao invés de dar boas vindas ao novo, lamenta a passagem do antigo".
É um julgamento persuasivo, mas o próprio Snell recruta, em defesa de Aristófanes, uma tradição crítica impressionante, que abarca desde August Wilhelm Schlegel, em 1800, até "O Nascimento da Tragédia", de Nietzsche, tradição essa que faz de Sócrates e Eurípedes os responsáveis pela morte da tragédia antiga, isto é, pela morte do mito e da mitificação.
No final das contas, o que fica estabelecido por Snell é uma herança dupla legada à crítica literária por Aristófanes. A crítica nasce da defesa do mito contra o racionalismo; mas só se torna verdadeiramente estética, ou iluminadora, quando inverte a postura moral, em favor do idiossincrático. Como fizeram Calímaco e tantos outros, depois dele, com o próprio Aristófanes.

Tradução de Arthur Nestrovski.

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