São Paulo, domingo, 3 de novembro de 1996
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Crônicas do universalismo crítico

NELSON ASCHER
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

"Crônicas do Individualismo Cotidiano" reúne as intervenções que Contardo Calligaris, psicanalista de origem italiana radicado sucessivamente na França, no Brasil e, atualmente nos EUA, divulgou nos últimos quatro anos, sobretudo no Mais! da Folha, mas também em publicações francesas e norte-americanas.
O título do livro, embora perfeitamente adequado a seu conteúdo, tem também, como aliás adverte o autor, um quê de enganoso, pois o peso e o significado que ele dá ao termo "individualismo" é distinto daquele que se lhe atribui corriqueiramente no Brasil.
A palavra "individualismo" se traduz geralmente como pecado ou desvio ideológico e, acompanhada de expressões como "hedonista" ou "pequeno-burguês", deve ser considerada nas comunidades eclesiais de base um crime capital. Não é sob esse prisma que Calligaris nem tanto a tematiza quanto tece variações ao seu redor. Esta entidade (marcada por uma culpa muito peculiar) é, para ele, a característica principal (mas não exclusiva) do homem ocidental moderno. Cercá-la, defini-la, criticá-la e -por que não?- defendê-la é menos uma meta fixada de antemão que o resultado final dos textos reunidos.
Vivendo nos EUA, os assuntos que o autor seleciona, tanto para tentar entendê-los quanto para testar suas próprias idéias, dizem quase todos respeito à realidade norte-americana atual. O que esmiúça são questões como o feminismo e a relação entre os sexos, a fisiocultura e os padrões "Barbie" ou "Top-Model" de beleza, a condição dos negros e seu(s) movimento(s), a sociedade de consumo, os ditames da correção política e da ação afirmativa, o problema das minorias étnicas, raciais, comportamentais, crimes hediondos e "causas célebres", crianças e o abuso de crianças etc.
Como se vê, suas preocupações procedem diretamente dos debates que se travam agora mesmo nos EUA, gerando, no resto do mundo, um misto de incompreensão boquiaberta e ironia condescendente. E no que é que esses debates interessam a nós, brasileiros? Resposta: em tudo.
O genial romancista e poeta holandês Cees Nooteboom, legítimo sucessor de Italo Calvino, conta que é com frequência convidado por alguns ministérios franceses para discutir a cultura e/ou política cultural da nova Europa em via (?) de unificação. Invariavelmente os anfitriões acabam reclamando da insensibilidade e da falta de alarme com que seu colega neerlandês trata o suposto perigo representado pela invasão da cultura norte-americana.
Em novembro último, ao ser perguntado por alguns conhecidos parisienses sobre meu domínio do alemão, retruquei, brincando (mas não muito) que ele se limitava a alguns conceitos elementares: "Lebensraum" (espaço vital); "Herrenvolk" (povo superior, ou de senhores); e "Judenrein" (limpo de judeus). Confesso que me surpreendi com o desconforto gerado por minha inocente piada. Afinal, diante de observações semelhantes sobre os americanos e sua língua, a aprovação de meus interlocutores teria sido explícita, porque na França -um país duas vezes invadido neste século pela Alemanha, e duas vezes salvo pelos anglo-americanos- o anti-americanismo, seja à esquerda, seja à direita, é de rigor.
No Brasil também, é claro -mas apenas entre a esquerda intelectualizada, já que há poucas populações mais pró-americanas no mundo do que a nossa. E, como sempre, o cidadão comum demonstra mais acuidade. Pois obviamente o parentesco mais próximo do Brasil é com os EUA, de modo que as polêmicas que lá se colocam são tanto mais relevantes aqui quanto mais se reafirma a inescapável tendência nacional a afogá-las em desconversa e em "deixa-disso".
Como Calligaris observa: "Uma parte da desconfiança ou mesmo do ódio que os Estados Unidos, por exemplo, parecem inspirar no Terceiro Mundo é certamente ódio de nossa própria paixão por sua imagem, que nos persegue". Assim, embora pouco fale do Brasil em seu livro, Calligaris está de fato contribuindo para que determinados debates se enraízem nestas terras.
Que seja um psicanalista a fazê-lo é tão natural quanto paradoxal. A psicanálise oscila não raro entre dois pólos: num, ela é o conjunto rígido e fechado de respostas dogmáticas; no outro, um sistema flexível de indagações pertinentes. Mas essa bipolaridade não se repete a toda hora nas outras disciplinas? Para se abordar, portanto, o temário esmiuçado por Calligaris, conta menos de fato em qual disciplina o autor se especializou do que o modo como a pratica.
Consequentemente, há figuras que parecem, mais do que Freud, tutelar esta coletânea: os frankfurtianos Adorno e Horkheimer, se bem que despidos do esnobismo de sua nostalgia "biedermeier"; Richard Rorty, Christopher Lasch, Phillipe Arriès e os historiadores franceses da vida cotidiana; os antropólogos clássicos e os sociais. As lições do marxismo tampouco se perderam, mas, por exemplo, o abstratíssimo "fetichismo da mercadoria" reaparece numa palpável "tirania dos objetos" que substituiu a de castas e nobrezas hereditárias, ou seja, enquanto consumismo.
Nem por isso "Crônicas do Individualismo Cotidiano" é uma obra meramente informativa, de divulgação. O autor não reproduz neutra ou impessoalmente o debate. Pelo contrário, ele toma partido, argumenta, combate e em parte alguma isso se mostra mais claramente do que no seu "Quatro Dias em Gaza", um tríptico em que reúne suas "notas de viagem", a entrevista que lá fez com o publicitário Oliviero Toscani, diretor de arte da Benneton, e seus próprios comentários à entrevista.
Se seu livro tem, no entanto (e entre tantas outras), uma tese central, esta é a de que o ideário basicamente iluminista de nossa cultura -representado, por exemplo, pela defesa da liberdade de consciência, pela tolerância diante das diferenças, pelo questionamento das fontes tradicionais de autoridade- não deveria nos levar nem a pensar ilusoriamente que o universalismo é um dado consensual e livre de inimigos inaceitáveis (o integrismo islâmico é seu exemplo mais conspícuo), nem deveria nos convencer de que se encontra isento de contradições. Como diz o autor: "...a tolerância não é uma escancarada indiferença, mas a defesa positiva de um valor. Portanto ela pode implicar também uma oposição declarada contra qualquer cultura que se aproveite da tolerância dela sem praticá-la". Nem etnocentrismo, nem relativismo absoluto, mas sim universalismo não-ingênuo, crítico e auto-crítico.

LANÇAMENTO
Acontece amanhã, às 19h, o lançamento de "Crônicas do Individualismo Cotidiano", no Auditório Professor Anderson Fernandes Dias (r. Barão de Iguape, 110, tel. 011/278-9322).

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