São Paulo, domingo, 3 de novembro de 1996
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Uma inflacionada voz literária

ADRIANO SCHWARTZ
DA REDAÇÃO

Em determinado trecho de um desnecessário posfácio, o escritor Rodrigo Lacerda tem um instante de iluminação e diz: "... sou prolixo demais". Com isso, faz o preciso diagnóstico do principal defeito de seu segundo livro, "A Dinâmica das Larvas".
O autor, um dos ganhadores do último Prêmio Jabuti (com "O Mistério do Leão Rampante"/Ateliê Editorial), estrutura a obra a partir de quatro personagens -um frustrado editor universitário; sua mulher, a promotora de um concurso de contos; um falido editor comercial; e um zoólogo com aspirações literárias.
Para contar o conflito criado pelo momento em que os destinos dos quatro personagens se encontram, o livro emite sinais de duas vozes. Uma é, para dizer de modo simplificador, a de um narrador tentando construir uma história. A outra, a de alguém que tenta atrapalhá-lo. O fato já acontecera no primeiro livro de Lacerda, mas, naquele duelo, a primeira voz saíra parcialmente vitoriosa, conseguira abafar parte das manifestações "perniciosas" da segunda.
Em "A Dinâmica das Larvas" acontece o oposto. Assim, por paradoxal que seja, talvez um dos grandes problemas da "comédia trágico-farsesca", que tem como fulcro da narrativa uma disputa editorial, tenha sido a falta de aconselhamento crítico de um editor. (Há outros problemas, como, por exemplo, o encadeamento pouco fluente e a frágil estruturação das cenas, principalmente da primeira metade do texto).
A questão se agrava, entretanto, quando, ao final da história, o leitor se depara com o tal posfácio, uma pretensa carta a um amigo, na qual o autor tenta explicar suas motivações e intenções no texto, ressaltando o caráter fictício da obra, que não teria nada de romance à clef -os personagens de "A Dinâmica das Larvas" não retratariam pessoas reais. Ou seja, aquela voz incômoda que aparecera durante toda a narrativa assume de vez o comando, anula o literário e tenta se impor.
É óbvio que Lacerda não é o primeiro escritor a comentar a própria obra. O que pode não ser tão óbvio é que são raros os escritores que fazem isso com pertinência. De modo geral, o que acontece é o autor mostrar-se um mau leitor do que escreveu.
Se o posfácio não estivesse ali, o livro seria provavelmente lido como uma obra de entretenimento -o que não é nenhum problema- que não entretém tanto assim. Ao inseri-lo, o autor obriga o leitor a retroagir, a remontar a narrativa dentro de um contexto em que -e ele cita, entre muitos outros, Aristófanes, Shakespeare, Molière, Oscar Wilde- a obra só tem a perder.
Ao ímpeto didático e inflacionário de Lacerda, talvez seja o caso de contrapor as palavras de Raduan Nassar -um dos mais "econômicos" escritores brasileiros dos últimos 20 anos-, ditas em entrevista no último número dos "Cadernos de Literatura": "Nunca pensei em expor qualquer teoria a respeito do meu minguado trabalho, nem vejo sentido nisso. Ou esse trabalho fala por ele mesmo, sem o socorro de qualquer suporte teórico, ou deve ser descartado".
Por enquanto -e infelizmente, já que a flácida literatura brasileira atual precisa com urgência de bons novos nomes-, a excessiva voz literária de Lacerda não consegue falar por si mesma.

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