São Paulo, domingo, 3 de novembro de 1996
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Quando Rambo substitui Bogart

JAMES NOLAN
ESPECIAL PARA A FOLHA

"As negras nuvens da ira de Deus agora pendem sobre suas cabeças...", Jonathan Edwards em "Pecadores nas Mãos de um Deus Enfurecido".

Desde o famoso sermão de Jonathan Edwards em 1741 até hoje, pouco mudou na sociedade dos EUA: precisamos nos unir para purificar o pecado entre nós, senão ele nos contaminará e mandará direto ao inferno. A forma tem variado, mas é o mesmo vinagre puritano em nova embalagem.
A teologia puritana arrefeceu, mas pureza e contaminação continuaram sendo uma obsessão nacional. Um bom exemplo desta mentalidade é a história de Shirley Jackson, "A Loteria": todo ano, num vilarejo da Nova Inglaterra, um vizinho é escolhido ao acaso para ser apedrejado até à morte na praça principal, para expiar a ansiedade do povo. A ferocidade com que adultos e crianças atacam o vizinho termina na pacífica satisfação de que o mal foi afastado por mais um ano.
No passado, os americanos se voltaram contra bruxas, católicos, judeus, negros, bêbados, comunistas e homossexuais, todos elementos que, em um dado momento, eram vistos como corruptores da pureza do vilarejo. Chegou a vez dos fumantes. A ironia da história não deveria escapar a ninguém. As primeiras colônias comerciais na América do Norte foram fundadas por companhias de comércio de tabaco holandesas e inglesas. A invenção do tabaco como produto e dos EUA como nação foi simultânea e contingente. A fase inicial da história dos EUA está intimamente ligada à comercialização de uma erva indígena usada pelos nativos com fins medicinais e cerimoniais. Por volta do século 19, o tabaco era a colheita que mais trazia dividendos aos EUA, e boa parte da Europa já estava viciada no charuto, cachimbo, fumo de mascar e rapé.
Meus amigos europeus sempre se queixam de que foram os filmes e a publicidade americanos que, a partir dos anos 20, mudaram os hábitos dos fumantes em todo o mundo. Passamos dos cavalheiros baforando em seus charutos e cachimbos ao sexy glamour unissex dos fumantes empedernidos, à la Bogart e Bette Davis. Inevitavelmente, eles são europeus que amargaram férias de verão nos EUA, acendendo cigarros às escondidas nas ruelas e quintais, como se fossem viciados em drogas. Parece-lhes inconcebível que o principal fornecedor de um produto possa mudar de rumo de repente para se tornar o adversário solitário e ruidoso deste mesmo produto. No entanto, os EUA mudaram de produto, como qualquer pessoa que vai ao cinema pode constatar, e de gigolô do álcool e dos cigarros, passaram a gigolô de uma dupla muito mais perigosa: carros e armas.
O coquetel civilizado e o cigarro do cinema americano dos anos 30 e 40 foram substituídos pelas cenas de perseguição de carros com estrondos metálicos e massacres à mão armada com sangue para todo lado dos saudáveis anos 80 e 90. E que vendemos agora ao mundo? Ora, carros e armas. E, para tranquilizar as consciências, os cigarros agora trazem a advertência de que são perigosos à sua saúde, ao passo que nossos carros, rifles de assalto e mísseis Scud não são.
Os calvinistas holandeses, os principais comerciantes mundiais de especiarias e escravos no século 16, expiavam periodicamente sua culpa por meio de reuniões religiosas em que desterravam de suas congregações os vis pecadores. Enquanto a indústria de armamentos e o petróleo gerados nos EUA rasgam o mundo, causando destruição irreversível à camada de ozônio e intermináveis pequenas guerras, nós nos mantemos virtuosamente à distância, expiando os fumantes e, paternalistas, advertindo o mundo que, para seu próprio bem, deve deixar de fumar. Não fume produtos americanos: fazem mal à saúde. Mas, por favor, guie e atire produtos americanos: Rambo substitui Bogart.
Fumar é, claro, um hábito sujo, e, juntamente com o álcool, a carne vermelha, ostras fritas, torta Sacher e sexo desenfreado, não é o particularmente bom para a saúde. Milhões de ratos de laboratório não precisavam ter morrido para provar isso. O ideal seria subsistir com frutas e nozes numa máquina de exercícios, tal como essas cobaias perfeitas e voluntariosas que vivem entre nós. A auto-perfeição compulsiva do temperamento calvinista -"cada dia um pouco melhor em todos os sentidos"- é herança de uma teologia na qual se tem que ganhar a salvação.
Chegou o momento de levantar-me do banco da igreja e declarar, diante do olhar lacrimoso da congregação, que sou um pecador. Eu fumo. A letra escarlate que me separa deles é um "F" de fumante. O cassete evangélico é contínuo e implacável: "Ainda há tempo para o arrependimento; coloquei nicoderm e, veja, me salvei".
Glória a vós, Senhor, digo eu, e me passe o cinzeiro. Ocupo com humildade meu lugar de fumante. As pessoas ficam me olhando. Sinto sua ira e condenação. Minha sobrinha pequena vem correndo me informar que aprendeu nas aulas de catecismo da saúde que vou morrer porque fumo. Espero que aprenda na classe seguinte que vamos morrer todos. Se a alternativa fosse a imortalidade, pensaria duas vezes antes de fumar.

Tradução de Bia Wouk.

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