São Paulo, domingo, 3 de novembro de 1996
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Um necessário sistema de inclusão

ANGELA GILLIAM
ESPECIAL PARA FOLHA

s brasileiros raramente têm a oportunidade de ler uma avaliação da ação afirmativa feita pelas pessoas cujas vidas foram positivamente afetadas por essa política. Isso se deve em parte ao fato de que muitos jornalistas brasileiros adotam as perspectivas de mundo dos conservadores norte-americanos, que, em suas abordagens a essas questões, rotulam os movimentos pelos direitos civis e pela justiça de antipatrióticos, antidemocráticos e anacrônicos, chegando a descrevê-los como exemplo de racismo praticado contra homens brancos.
Mas a ação afirmativa já beneficiou muitas pessoas de todas as origens possíveis nos EUA, incluindo homens brancos. Muitos desses avanços se deram em consequência da fusão do movimento feminista com a luta contra a discriminação racial. Um exemplo: como resultado de um processo judicial movido por uma negra em minha cidade natal de Seattle, a imposição do limite máximo de idade de 26 anos aos candidatos a programas de aprendizado em sindicatos foi anulada, tanto para homens quanto para mulheres. O processo de Sybil Brown versus a Subsede Local 46 (Seattle) do Sindicato dos Eletricitários dos EUA e Canadá foi movido após a aprovação da lei federal de direitos civis que proibiu discriminação de trabalhadores com mais de 40 anos.
Em Seattle, boa parte da liderança teórica dos movimentos pela justiça e igualdade de direitos saiu das fileiras dos eletricitários, encanadores, trabalhadores no setor de serviços, representantes sindicais e trabalhadores no setor de processamento de peixes, a maioria dos quais integrantes de grupos diferentes, "minoritários". Baseada em minhas observações do humor popular surgido no Brasil durante a campanha eleitoral presidencial de 1994, cheguei à conclusão de que algumas profissões associadas à classe trabalhadora são fonte de piadas. É fato, entretanto, que, no caso de um líder do sindicato dos encanadores que também era ativista do movimento pelos direitos civis, foi a ação afirmativa que lhe garantiu a possibilidade de viajar livremente. Na visão de algumas das lideranças de Seattle, a legislação da ação afirmativa constituiu o avanço mais importante para os trabalhadores na segunda metade do século 20.
Na condição de militante e acadêmica afro-americana, de origem operária, senti e sinto a ação afirmativa como uma reforma originada no movimento pelos direitos civis, que representou um ímpeto democrático na cultura norte-americana. Isso não quer dizer que a ação afirmativa não tenha tido problemas em sua aplicação, especialmente nos casos em que as instituições optaram pelo simbolismo numérico e enfatizaram a forma, em lugar do conteúdo, na hora de aplicar essa legislação. Em algumas situações de contratação de funcionários, por exemplo, e para alguns integrantes dos comitês de admissão de estudantes em universidades, uma mulher negra era forçada a escolher qual grupo minoritário ela supostamente representava -se sua presença naquele contexto se dava enquanto "negra" ou enquanto "mulher".
Trata-se de um ponto importante, pois, como indicam a maioria das pesquisas, as mulheres brancas, enquanto grupo, têm sido as principais beneficiárias da ação afirmativa. Quando entrei na faculdade, eu não podia viver no alojamento estudantil da Universidade da Califórnia em Los Angeles, porque a universidade adotava a política de excluir estudantes residentes negros. No entanto, a presença de negros nos alojamentos da maioria dos campi universitários já era normal na década de 70. Além disso, quase todos os empregos que já obtive nos EUA tiveram alguma relação com a influência da ação afirmativa. Por exemplo, o fato de que eu falo espanhol e português terminou por ser visto como habilidade positiva em uma sociedade multicultural e possibilitou-me, sete anos atrás, obter o cargo docente que ocupo hoje.
Assim, a ação afirmativa não foi uma preferência. Foi um instrumento por meio do qual puderam ser minimizadas as preferências antes concedidas a outros grupos. Ela representava a oportunidade de se competir por empregos com outros grupos demográficos, por meio do "nivelamento do campo de ação". Ela nunca representou a garantia de empregos, apenas a oportunidade de se obtê-los.
Mas os conservadores redefiniram a ação afirmativa de modo a significar "preferências raciais" (seleção baseada exclusivamente numa identidade racial específica), cotas (um número fixo) e "discriminação inversa". Mas a ação afirmativa nunca significou "cotas", conceito este que possui uma relação histórica com o passado norte-americano e que foi aplicado pela primeira vez às políticas imigratórias excludentes durante a década de 1920. As pessoas que eram objeto das políticas imigratórias restritivas do governo naquela época eram imigrantes gregos, italianos e portugueses, europeus orientais, como católicos poloneses e judeus russos, e os irlandeses racialmente discriminados. Durante esse período, o ingresso de alguns grupos populacionais asiáticos nos EUA foi excluído. Assim, quando se denigre a ação afirmativa, retratando-a como um sistema excludente de cotas -quando, na realidade, representa uma luta pela inclusão-, o que se está fazendo é virar a história de ponta-cabeça.
À medida que cresce a disparidade entre os ricos nos EUA e o resto da nação, a desigualdade de renda entre os menos e os mais privilegiados já se tornou a maior desde a 2ª Guerra Mundial. Mas as elites empresariais afirmam que, ao continuar escrevendo sobre a crescente desigualdade de renda e trazendo a público a perda permanente de empregos nos EUA, os jornais e outros órgãos da mídia estão impelindo o país no rumo da "luta de classes". Mas luta de classes é uma coisa que já existe: executivos muitas vezes ganham um salário cem ou mais vezes superior ao salário do trabalhador médio em suas próprias empresas.
A população nacional teme que seu país esteja se tornando mais mesquinho e mais partidário de vinganças gratuitas, porque a insatisfação popular suscitada pela economia é dirigida aos pobres, aos integrantes de grupos minoritários, aos novos imigrantes, às mulheres independentes e trabalhadoras e à ação afirmativa. Os ataques à ação afirmativa e a outros programas sociais exercerão um efeito negativo sobre os segmentos mais vulneráveis da sociedade norte-americana, o que significa que os EUA irão, finalmente, sentir os efeitos adversos das políticas de ajuste estrutural impostas aos países do Terceiro Mundo pelo Fundo Monetário Internacional e pelo Banco Mundial. Esse fator vincula inextricavelmente as preocupações do cidadão norte-americano médio com as de outras populações do hemisfério ocidental e do planeta. O fato de alguns jornalistas e acadêmicos norte-americanos deixarem de constatar esse vínculo é compartilhado por alguns de seus colegas brasileiros. Os intelectuais muitas vezes deixam de levar em conta a relação entrelaçada existente entre sua própria identidade, seus privilégios e as análises que produzem, numa sociedade divida por questões de raça e classe social.
No clima contencioso que domina a discussão acerca da ação afirmativa, é comum ver mulheres ou integrantes de grupos minoritários sendo automaticamente vistos como menos qualificados do que alguns de seus colegas brancos do sexo masculino.
O inverso também vale: as imagens veiculadas pela mídia costumam retratar os homens brancos como sendo mais inteligentes, capazes e qualificados do que as mulheres e os integrantes de grupos minoritários. A falácia desse pressuposto automático de superioridade garante o domínio da mediocridade. E, quando indivíduos medíocres se arrogam o direito de definir o que é excelência, é a sobrevivência da nação que corre perigo.

NOTA: Ação afirmativa é uma política social praticada nos Estados Unidos de dar preferência, na escolha de candidatos a empregos, vagas em escolas etc., a pessoas que frequentemente são vítimas de tratamento injusto devido a seu sexo ou sua origem racial (nota da Redação).

Angela Gillian é antropóloga; autora, com G.C. Bond, de "Construction of the Past: Representation as Power" (Construção do Passado: Representação como Poder, Editora Routledge).

Tradução de Clara Allain.

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