São Paulo, domingo, 3 de novembro de 1996
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'Face Escrita' é réquiem para o kabuki

JOSÉ GERALDO COUTO
ESPECIAL PARA A FOLHA

O kabuki -surgido no Japão no século 17- é uma arte sutil e cerimoniosa, na confluência do teatro, da dança, da música e da mímica.
No kabuki, os papéis femininos são sempre interpretados por homens, os onnagatas.
"A Face Escrita", do diretor suíço Daniel Schmid, é, à primeira vista, um documentário sobre o último grande onnagata, Tamasaburo Bando, de 46 anos.
Na verdade, Bando serve como guia de um ensaio cinematográfico sensível e delicado sobre a arte do ator e seu papel na cultura tradicional japonesa. A interpretação é vista como uma forma de escrita, em que o "papel em branco" é o rosto do ator.
Além de mostrar o onnagata em cena, ou se preparando no camarim (a maquiagem é demorada e minuciosa, o vestuário é complicado e exuberante), o filme traz as explicações de Bando sobre seu método de trabalho.
"Não procuro imitar os gestos das mulheres", diz o ator, "mas compor movimentos e expressões que comuniquem sua essência". O resultado é esplêndido.
Mas não se trata de um mero exercício narcisista. Bando introduz artistas que lhe serviram de inspiração, como o veterano dançarino de butô Kazuo Ohno, a atriz de teatro e cinema Haruko Sushimura (ambos com 88 anos) e a inacreditável gueixa Asaji Tsutakiyokomatsu, que aos 101 anos ainda toca seu instrumento e canta.
A invejável serenidade desses artistas anciãos -todos ainda em atividade- dá bem a medida de uma cultura em que a arte, o trabalho, a religião e a vida pessoal constituem uma coisa só.
Ou melhor, constituíam. Pois este é, em grande parte, um filme sobre um mundo em extinção. A tradição do teatro kabuki (assim como a de outras coisas preciosas) cede terreno para a tecnologia e a massificação da vida japonesa.
Numa cena discreta e eloquente, o ator encontra um menino sentado na calçada diante do teatro. O menino se concentra num videogame. O ator faz-lhe perguntas e tenta interessá-lo pelo teatro.
O diálogo cheio de silêncios entre eles mostra o confronto entre dois mundos. Não é difícil prever qual vai prevalecer. Nesse sentido, "A Face Escrita" é um réquiem.

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