São Paulo, domingo, 3 de novembro de 1996
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Sugawa rejuvenesce ao modo de sua heroína

CARLOS REICHENBACH
ESPECIAL PARA A FOLHA

A primeira coisa que chama a atenção no convívio pessoal com o diretor Eizo Sugawa é a absoluta ausência de arrogância, a simplicidade e a atenção absoluta que dedica ao interlocutor.
Por diversas vezes, durante debate sobre cinema japonês promovido pela Folha, assinalou que não se julga intelectual, evitando a todo custo o discurso cerebral.
Para todas as perguntas mais complexas, respondia de maneira direta, quase trivial. Afirmou peremptoriamente que faz filmes para o público em geral, e não para si mesmo, apesar de admitir que sua obsessão é a alma humana.
Pela sucinta amostragem de sua obra, oferecida pela 20ª Mostra de Cinema, foi possível detectar duas vertentes em sua filmografia.
Tomando-se, por exemplo, os emblemáticos "Volúpia da Vingança" e "Raros Sonhos Flutuantes", curiosamente exibidos uma única vez, pode-se perceber em ambos os reflexos de um inconformismo exacerbado e a predileção por personagens à deriva do avanço capitalista.
Mas as diferenças despontam rapidamente no estilo ágil e agressivo do primeiro, um apêndice do já clássico "Morte à Fera", com a lente anamórfica do cinemascope sendo operada na mão do camera-man, na montagem veloz, na encenação sem sutilezas, em contraste com a "mise-en-scène" ultraelaborada, os tempos reflexivos, os closes devastadores (onde, ao contrário do telefilme e do cinema americano em geral, os atores pensam antes de falar) e o lirismo subversivo de seus filmes mais recentes. Ambos merecem ser reprisados no encerramento do evento.
"Volúpia da Vingança", que foi mal-lançado comercialmente nos cinemas de São Paulo no fim dos anos 70, foi uma preciosa redescoberta. Último filme feito por Sugawa para os estúdios da Toho, é a exacerbação de seus filmes físicos.
O enredo é explosivo: um professor universitário, fascinado por Herman Melville, se transforma no anjo amoral que irá vingar a honra de seu pai suicida, um pequeno empresário de muito caráter e pouco cacife, que foi engolido pela avidez de uma holding predatória. Enxergando na incorporação desumana o símbolo supremo do mal, à imagem da baleia Moby Dick, o professor vai eliminando um por um dos altos executivos que causaram a desgraça de sua família. Olho por olho, fera por fera.
No rastro irracional da vingança desenfreada, o professor descobre no crime uma forma de ascese, onde a noção de bem e mal se confundem com o gesto desesperado de purificação, forma radical de purgar todas perversões do capitalismo degenerado. O poder sendo exorcizado com sangue e dor.
Quando parece que o filme vai se render ao julgamento moral de seu "herói" carrasco, surge a personagem de um aluno rebelde e imbecil, um vândalo abominável que busca justificar a violência e racionalizar a barbárie.
Um boçal transformado em cúmplice e para o qual o professor reserva a mais implacável das lições de vida e morte.
É óbvio que o "herói" travestido em máquina de matar enseja por um fim kamikaze à altura de seu desvario esquizofrênico. Mas a maior ironia do filme é que a polícia aparece volta e meia só para recolher cadáveres.
"Volúpia da Vingança" não faz prever nem de longe a poesia avassaladora de "O Rio dos Vaga-Lumes" e, sobretudo, de "Raros Sonhos Flutuantes". Não é exagero afirmar que se trata do mais niilista dos filmes da história do cinema. Um petardo capaz de assustar platéias de estômago fraco.
José Fioroni Rodrigues, o grande expert brasileiro em cinema japonês, saiu da sessão exclamando: "Não me dei conta na época do lançamento de como esse filme é espetacular."
Os filmes físicos de Eizo Sugawa remetem a outro mestre do "cinema do corpo", Samuel Fuller. Ambos defendem radicalmente a idéia de que cinema é emoção.
Jamais abriram mão de sua linguagem pessoal, que muitas vezes beira o "naif". Ambos dominam plenamente a gramática cinematográfica e investem na invenção permanente e sem firulas.
Ambos são pessoas doces, acessíveis, que desprezam o rótulo de "artista". Ambos são monumentos vivos da criação e do prazer fílmico. E, como diria Jorge Luis Borges, são gênios, mas não no sentido germânico do termo.
"Raros Sonhos Flutuantes" é uma parábola contemporânea a respeito da subversão de toda paixão absoluta. Um arriscado poema sombrio que não teme a transgressão. Executivo, ao ser rebaixado de cargo, tenta o suicídio. Mal-sucedido, é forçado a dividir o mesmo quarto de hospital com uma mulher que fica conhecendo apenas pela voz, já que inicialmente são separados por um biombo.
São quase oito minutos confinados à cama e ao rosto do ator principal, numa lição ímpar de domínio cinematográfico. É quase inacreditável que Sugawa torne verossímel uma relação sexual onde os participantes não se tocam, não se conhecem e tenham passado por uma experiência traumática há tão pouco tempo.
O filme, construído em cima da estapafúrdia história de uma mulher que, num determinado momento da velhice, começa a rejuvenescer aceleradamente, atinge o status de obra-prima no desfecho comovente e transgressivo.
Quando se imagina que não é possível ir mais longe nos limites da paixão e da fantasia que une e separa o casal de amantes, Sugawa filma um banho de despedida onde inesperadamente brota poesia e fineza.
Os filmes recentes de Sugawa tangenciam sentimentos prosaicos e profundos. Como bem observou o rigoroso e emocionado cineasta Andrea Tonacci, na saída da sessão no auditório do Masp, existem filmes que deveriam ser premiados não só pelas suas qualidades estéticas, artísticas e inventivas, mas, sobretudo, por ampliarem a visão de mundo e por representarem uma intensa fração de luz na vida de quem o assiste.

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