São Paulo, domingo, 3 de novembro de 1996
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'First Class' troca o jornalismo pela publicidade

FERNANDO DE BARROS E SILVA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Não poderia ser mais adequado, um caso exemplar de acerto involuntário, o título do novo programa do SBT comandado por Marília Gabriela. Os cacoetes publicitários de "First Class" vão muito além do que sugere seu nome, que evoca imediatamente algo como uma agência de modelos, uma butique da alta roda ou uma revista de futilidades.
O acento publicitário, no caso, deve um tanto ao cenário, concebido para ser "despojado", mas sobretudo à postura da jornalista, que tem o dom de parecer profunda, incisiva, inteligentíssima, enquanto desfia a sua conversa fiada.
O formato de "First Class" é o mesmo do "São Paulo, Brasil", que a Cultura exibe aos domingos com Roberto Muylaert, Bob Fernandes e Barbara Gancia.
O diferencial fica por conta da inteligência de José Simão, que assim mesmo corre o risco de ser triturado por uma dinâmica que tende a reduzir seu "gauchismo" esclarecido e debochado à figura do piadista de plantão.
Augusto Nunes funciona como contraponto a Simão. É o responsável pelo lado "sério" do programa. Há duas semanas, contou ao público que tomou champanhe com o presidente no Palácio da Alvorada depois de entrevistá-lo no "Roda Viva". São coisas assim que nos fazem ver que seriedade e falta dela às vezes trocam de lado.
O que incomoda nesses programas não é tanto o fato de serem concebidos para se falar muito e não se dizer nada, mas antes a sua pretensão à seriedade.
Tudo se passa como se estivéssemos num salão europeu do século 19, em que pessoas educadas trocavam opiniões sobre Napoleão, a física de Newton, a ópera de Mozart, os escritos de Rousseau etc. Essa idéia de que se poderia gastar o tempo falando sobre coisas que a princípio interessavam a todos está na base do que um dia deve ter sido a esfera pública burguesa. Marx se referia a isso como a "educação dos cinco sentidos".
Mas nada disso existe mais. Ao passar o mundo em revista, "First Class" opina sobre o caso Cláudia Liz, discute o sotaque carioca de Marília Gabriela e, de quebra, mete a colher no tema da reeleição. Augusto Nunes aproveita e revela sua intimidade com o presidente.
Ao "comentar" a Bienal, a apresentadora diz que a sala de Andy Warhol é "belíssima", a de Paul Klee é "emocionante" e que Edvard Munch é "maravilhoso". Os adjetivos enfileirados dispensam qualquer comentário. O problema, na verdade, é mais grave. Na nossa época, o simples fato de alguém citar na TV o nome de três pintores já passa como sinal de vida inteligente.
Desde o extinto "Cara a Cara", em que funcionava um pouco como dublê de jornalista e terapeuta, naquele ambiente de confidências e intimidade simulada, Marília Gabriela estava procurando seu espaço. Parece que achou. Trocou o jornalismo pela publicidade.

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