São Paulo, quinta-feira, 7 de novembro de 1996
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Recomenda-se uma visita ao dentista

PAULO NOGUEIRA BATISTA JR.

"Desvalorizações, como visitas ao dentista, são amplamente temidas, às vezes necessárias, geralmente adiadas além da conta, infligem dor por algum tempo, e são frequentemente benéficas", escreveu certa vez o macroeconomista Stanley Fischer.
Faço essa citação e já imagino a reação do leitor: "Três semanas seguidas sobre câmbio!" Caro leitor, peço a sua paciência. Como dizia Nelson Rodrigues (outra vez essa figura fatal!), o que seria da nossa frágil unidade interior sem três ou quatro idéias fixas?
Além do mais, ninguém faz nada, ninguém consegue nada sem um mínimo de obsessão. Muitas vezes é preciso repetir a mesma coisa umas 300 vezes.
Estatísticas divulgadas pelo governo anteontem voltaram a confirmar a existência do problema. As exportações de outubro de 96 acabaram sendo inferiores em 4,9% às de outubro de 95. Computada a média por dia útil, as exportações de outubro ficaram 9,3% abaixo das de outubro de 95.
No acumulado do ano até outubro, as exportações cresceram apenas 3,8%. Isso implica nova e significativa queda da participação das exportações brasileiras nas exportações mundiais, uma vez que estas vêm crescendo algo como 7% a 9% durante o ano, segundo dados do governo brasileiro.
Mas nada parece abalar alguns defensores da atual política cambial. Economistas ligados ao mercado financeiro continuam escandalizados com a idéia de uma correção cambial. E começam a apelar para argumentos dos mais variados.
Além de insistir na afirmação de que a desvalorização seria inflacionária e comprometeria o programa de estabilização, manifestam agora preocupações com o seu impacto em termos de redução do salário real e concentração da renda nacional.
Bem, quando economistas ligados ao mercado financeiro começam a alardear preocupações com o salário real e a distribuição da renda, a gente logo fica com a pulga atrás da orelha. É como se a raposa revelasse uma súbita e enfática preocupação com o bem-estar das galinhas.
Em todo caso, vamos aos argumentos. O temor quanto ao impacto inflacionário da desvalorização parece cada vez menos convincente. As taxas de inflação têm sido baixas. Houve até deflação em alguns meses.
Com a economia muito mais desindexada do que era até 1994, uma desvalorização cambial elevaria o nível geral de preços, mas não afetaria duradouramente a taxa de inflação.
Como tentei explicar em artigo publicado nesta coluna em 26 de setembro, uma mididesvalorização de uns 10% a 15%, se realizada no momento certo e acompanhada de medidas apropriadas nos campos fiscal e monetário, não abalaria o programa de estabilização. Ao contrário, ajudaria a consolidá-lo, na medida em que contribuiria para remover uma de suas principais fraquezas: a propensão ao desequilíbrio externo decorrente da excessiva valorização cambial.
Observação semelhante foi feita pelo mesmo Stanley Fischer, que atualmente é o número dois na hierarquia do FMI, em debate com Pedro Malan, em Washington no início de outubro. Fischer fez elogios ao Real, mas observou que a atual combinação de câmbio e juros é insustentável. E sugeriu que, se fosse realizado um ajuste fiscal, o câmbio poderia ser corrigido sem maiores impactos inflacionários.
Com a mididesvalorização, cairiam os preços e salários brasileiros medidos em dólares, beneficiando as exportações e os setores que concorrem com as importações. O Banco Central poderia operar com taxas de juro mais baixas e permitir que a economia crescesse mais sem temer uma ampliação perigosa do desequilíbrio das contas externas.
É verdade que a mididesvalorização levaria a um aumento dos preços em reais dos bens internacionais (os importados, os substitutos próximos e os exportáveis). Tudo o mais constante, haveria uma diminuição do poder de compra dos salários. Mas o efeito seria modesto.
Como em toda economia de proporções continentais, a participação dos bens internacionais nos índices de preços ao consumidor é relativamente pequena.
Para o Brasil, vale a observação feita pelo grande economista James Tobin, em livro recentemente publicado: "Para os EUA, o impacto de uma apreciação cambial sobre os índices gerais de preços é pequeno. Além disso, é temporário, essencialmente um empréstimo de outros países que precisa ser pago. Mais tarde, a moeda tem de ser desvalorizada, e a redução de preços emprestada tem de ser revertida".
De qualquer forma, a pequena redução do salário real médio seria mais do que compensada pelos efeitos positivos da desvalorização.
Nos setores exportadores e que concorrem com importações, melhorariam o nível de emprego e o salário real.
Para a economia como um todo, a possibilidade de reduzir os juros e aumentar o nível de atividade e de emprego teria efeitos benéficos sobre a distribuição da renda. Os empregos gerados beneficiariam as famílias de baixa renda, que hoje estão sem rendimentos ou dependem do seguro-desemprego e de rendas obtidas precariamente no mercado informal.
O principal obstáculo à desvalorização parece ser de outra natureza. Trata-se do impacto sobre os mercados de ativos financeiros. A correção cambial funcionaria como uma espécie de imposto sobre o capital dos setores engajados na lucrativa arbitragem entre os mercados financeiros externos e internos.
A previsibilidade do câmbio é que permite a esses setores faturar sossegadamente com a diferença entre as taxas de juro internas e externas.
Paradoxalmente, o fator que mais dificulta a correção cambial é a dependência em relação aos fluxos financeiros externos produzida pela própria valorização cambial!
Não sei se fui claro. Se não fui, paciência. O espaço acabou.

E-mail: pnbjr@ibm.net

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