São Paulo, quinta-feira, 7 de novembro de 1996
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A solitária tem Q.I. para cursar filosofia na USP

DAVID DREW ZINGG
EM SÃO PAULO

Ontem à noite acordei ao som de pezinhos minúsculos perambulando pela casa.
Não, Joãozinho, não eram os pezinhos minúsculos de minha Jennifer perambulando pela casa. Tampouco era o perambular dos pezinhos minúsculos de uma criança.
Era o som de dezenas de pezinhos daquelas velhas amigas de toda família paulistana: as baratas.
Para muitas pessoas, a reação normal ao topar com uma barata graúda no meio da noite é esmagá-la com a primeira pedra de bom tamanho que estiver à mão. Quanto maior a barata, maior a pedra.
Como qualquer professorinha de ginásio é capaz de esclarecer, barata é muito diferente de aranha, outro inseto com o qual você corre o risco de trombar depois da meia-noite.
Se você topar com uma aranha a caminho do banheiro, pode facilmente confundi-lo com seu cachorrinho de estimação. À noite, as aranhas adquirem o ar de quem vestiu a pele de um mamífero significativamente maior -uma vaca, digamos.
Alguns professores de ciência metidos a besta andam por aí dizendo aos alunos que aranhas não são insetos, e sim "aracnídeos". Trata-se de uma afirmação obviamente ridícula.
Todos nós sabemos que aranhas são "bichos", nome intelectual dado aos insetos.
A própria palavra "inseto" é uma combinação de duas palavras do grego antigo: "in", que significa "um" ou "uma", e "seto", cujo significado pode ser traduzido por "criaturazinha repulsiva".
Portanto, não apenas as aranhas são insetos, mas também as águas-vivas, os morcegos, o finado Adolf Hitler, as ostras e os mexilhões.
Outro inseto muito conhecido é a solitária.
A solitária é muito, muito diferente da barata ou aranha comuns e corriqueiras, que têm por hábito passar seu tempo EMBAIXO de objetos úmidos e escuros, tipo sua geladeira.
A solitária costuma vir equipada de um Q.I. superior aos dos outros "bichos". Ela tem inteligência suficiente para passar no vestibular e ser admitida no curso de filosofia da USP.
A solitária não perde tempo perambulando por sua casa depois do escurecer, não senhor!
Esperta, ela tem uma estratégia muito melhor: vai alojar-se DENTRO de você!
A Enciclopédia Britânica informa que as solitárias "existem no mundo todo e seu tamanho pode variar de cerca de um milímetro a mais de 15 metros".
Imagine só uma coisa dessas!
Se você é uma pessoa de estatura média, pode neste exato momento estar abrigando uma minhoca que pode chegar a medir DEZ VEZES SUA ALTURA!
Se você tiver qualquer motivo para desconfiar que realmente esteja abrigando uma solitária de 15 metros de comprimento, tome cuidado!
Você precisa mimar sua amiga oculta de todas as maneiras possíveis. Por exemplo, alimentá-la com carne de porco crua ou qualquer outros dos quitutes que as solitárias tanto apreciam.
Nunca, SOB HIPÓTESE ALGUMA, tente convencer a solitária a sair.
Não faça nada para irritar sua hóspede interior de qualquer maneira. O Brasil já tem problemas suficientes com pessoas sem teto, sem precisar enfrentar multidões de enormes e furiosos parasitas descendo a avenida Paulista em passeata.
Voltemos ao caso dos pezinhos minúsculos perambulando embaixo e em volta da minha cama, ontem, por volta da meia-noite.
O som dos passos da barata residente em minha casa mais parecia o trovejar dos pés de um atleta de grande porte, do tipo de Mike Tyson ou Maguila. Estou convencido de que ela só podia ser representante de uma variedade diferente de baratas: a das baratas vampiras gigantes.
Tio Dave sabe tudo sobre esses insetos mutantes, porque costuma acordar cedinho aos domingos para assistir a um programa de TV realmente informativo chamado "Globo Rural".
Trata-se de um programa dedicado principalmente a pessoas como o agricultor típico de Bananalândia, de quem todos nós temos a pena que ele merece.
Enquanto sentimos pena desse herói sofredor que, ao mesmo tempo que enche nossa cesta básica, não pára de perder dinheiro, ele -o herói- encharca o solo com herbicidas caros e altamente eficientes.
O heróico agricultor o faz apesar do fato científico amplamente conhecido de que os produtos químicos provocam a mutação dos insetos, que passam a crescer e adquirir proporções gigantescas, como já foi documentado nos inúmeros filmes japoneses postos no ar pela mesma emissora logo depois do "Globo Rural".
O resultado é que o Brasil e sua capital, São Paulo, estão infestados de baratas vampiras mutantes gigantescas, uma das quais ouvi ontem à noite.
Estou começando a acreditar que esses bichos ferozes escolheram minha casa para funcionar como sua sede geral.
A questão é: o que podemos fazer sobre essa invasão de Baratas Vampiras Mutantes Gigantescas? E como podemos fazê-lo antes que seja tarde demais para salvar o Brasil e o mundo?
Para encontrar as respostas, convoquei um agente da Interpol, que, naturalmente, preferiu manter sua identidade em segredo.
Com base em sua vasta experiência em lidar com vampiros mutantes de todos os tipos, incluindo assaltantes de bancos e políticos, o agente da Interpol fez um prognóstico pessimista em relação a nosso futuro.
"Depois de comer os cachorros, gatos e animais menores da nação, as baratas mutantes vão se espalhar pelo país para consumir rebanhos de gado, granjas de criação de frangos, edifícios de escritórios e residências."
"As criancinhas estarão completamente à sua mercê", completou.
O problema exige que sejam tomadas medidas duras, enérgicas e eficientes.
Talvez o primeiro passo indicado seja enviar o prefeito de São Paulo, juntamente com o líder do Senado em Brasília, num passeio de helicóptero para fazer cara feia para os bichos elefantinos.

Tradução de Clara Allain

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