São Paulo, quinta-feira, 7 de novembro de 1996
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Sobreviventes

OTAVIO FRIAS FILHO

Os candidatos chegam ao fim da campanha como gladiadores num circo romano, quando o sol cai sobre os destroços na areia. Bateram, apanharam, foram insultados, trazem cicatrizes que os acompanharão para sempre, mas a audiência, primeiro a contragosto, depois numa apoteose, termina por entregar-lhes a vitória.
Ao contrário do circo romano, esse ritual é pedagógico -não apenas para o eleitorado como também para o postulante. A democracia tem por base a desconfiança pública, é preciso submeter o candidato a todo tipo de prova, ainda que injusta, confrontá-lo com acusações mesmo quando elas não passam de suspeitas.
A têmpera do político se fortalece depois desses rituais de massacre, ele se torna mais sábio, passa a conhecer melhor seus defeitos, purifica, por assim dizer, sua vocação pública. Vê no sucesso e no fracasso os dois impostores que eles são, como disse Kipling. Ganhar é bom, mas a derrota ainda é a melhor escola.
*
O avião é o mais seguro dos meios de transporte. Vamos admitir que as estatísticas estejam corretas, que elas anulem a variável de que passageiros de avião usam o meio com muito menos frequência do que o carro, para comparar, corretamente, a incidência de desastres sobre o número de deslocamentos e não de usuários.
Ainda assim, reconfortantes como são, elas apresentam o problema de toda estatística, que é medir a quantidade sem medir a qualidade do risco. Sem dúvida que o automóvel é um aparelho assassino, mas o risco parece mais contornável, suas consequências admitem gradações em vez do tudo-ou-nada do avião.
As estatísticas são valiosas para orientar decisões racionais e demonstrar a segurança impessoal do meio aéreo. Têm muito pouco a dizer, porém, para o caso de cada pessoa em cada viagem. Se não houve acidente, elas são desnecessárias, nem nos lembramos delas ao sair daquela asfixia de metal; se houve, são inúteis.
Como na famosa aposta de Pascal, aliás um dos pais da estatística, do ponto de vista subjetivo estamos sempre diante de uma chance de 50% para cada lado, pela simples razão de que não dispomos, infelizmente, de milhares de vidas para permitir que a verdade probabilística se realize perfeitamente em cada um de nós.
Tudo isso é percebido intuitivamente, tornando dispensável, além de absurdo, que os aviões ostentassem o aviso: "O Ministério da Aeronáutica adverte: voar pode trazer danos irreversíveis à sua sobrevivência". Não é agradável fazer roleta-russa mesmo que o tambor da arma tenha um milhão de tiros, em vez de seis.
Acidentes de avião despertam para a vida. Redobram-se os cuidados, diminui a onipotência dos pilotos, até a culpa -matriz psicológica do medo de avião- cede. Acordamos para a verdadeira fatalidade, de que a vida deve ser vivida "como se não houvesse amanhã". É essa a gratidão que devemos às vítimas do desastre.

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