São Paulo, quinta-feira, 7 de novembro de 1996
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A cidade e o enigma

CARLOS HEITOR CONY

Jerusalém - É a terceira vez que venho a esta cidade e pela terceira vez sinto que há alguma coisa de errada com ela, além dos problemas políticos e religiosos.
Certo, é uma cidade estranha, bonita em muitos ângulos, mas cada vez fica mais difícil considerar essas ruas e casas como uma "cidade".
Vinte anos atrás, mal saída da Guerra do Yom Kippur, Jerusalém mandava suas crianças para as escolas sob escolta de soldados solidamente armados. E tinha de ser assim; qualquer bobeada e Golda Meir podia repetir: "Prefiro receber censuras do que condolências".
Ao longo dos séculos, a cidade viveu em sua carne massacres e destruições. A bela Jerusalém que o rei Davi sonhou para seus descendentes, a alegria com que dançou à frente da Arca da Aliança que trouxe para cá, o grandioso templo de Salomão, o segundo templo de Herodes -tudo se reduziu a preces e pedras. Sobrou um pedaço de muro. E nasceu um povo obstinado que sobreviveu à diáspora e ao holocausto.
A cidade dá agora a impressão de viver sem festejar uma vitória silenciosa e enigmática. Dez anos atrás, Belém fazia parte da grande Jerusalém, suas ruas e casas se encontravam a meio caminho, era tudo Israel. Hoje, quando saltei em frente à igreja da Natividade, a primeira coisa que vi foi a bandeira da Autonomia Palestina -que ainda não é um país, mas já é alguma coisa a mais do que uma bandeira.
Bandeiras e razões à parte, é tudo artificial nessa paz de uma cidade que significa exatamente isso, "cidade da paz". No Muro das Lamentações, um soldado rezava com uma metralhadora pendurada no ombro. Um palestino cuspiu quando o ônibus de Israel manobrou no estacionamento do hotel Shalom -que também significa paz.
Pensando em tudo isso, em Davi dançando à frente da Arca, Jesus pendurado no alto de um morro, romanos, turcos, cruzados, árabes, ingleses -Jerusalém é uma cidade sofrida, vítima de um destino inexplicável, protagonista de um drama que não acabou.

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