São Paulo, quinta-feira, 7 de novembro de 1996
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O controle da atividade policial

DYRCEU CINTRA

A investigação de um rumoroso caso de roubo reavivou a disputa em que a Polícia Civil e o Ministério Público se lançaram por causa da publicação do ato normativo da Procuradoria Geral de Justiça que disciplina como fazer o controle externo da atividade policial.
O controle da polícia é uma das funções institucionais do Ministério Público (artigo 129, 7º, da Constituição), e a reação dos delegados, que apontam ilegitimidade ou inconstitucionalidade no ato normativo, só se explica por razões corporativistas.
Dizer que o promotor não pode fazer investigação paralela nem interferir na condução do inquérito policial constitui inominável absurdo. Se ao promotor são dirigidas as investigações, para que possa ter dados que possibilitem o exercício da ação penal, cabe-lhe ordená-las como entenda útil: por meio de determinações no inquérito -procedimento pelo qual a polícia cumpre sua função constitucional de apurar crimes-, sindicâncias administrativas ou diligências outras. Aliás, sempre foi assim. Em consequência, é amplo seu poder de verificação da atividade da Polícia Civil ou Polícia Judiciária.
É claro que cerceamentos indevidos a liberdades podem ser levados ao Judiciário. Para isso há remédios como o habeas corpus.
A novidade do ato normativo é, na verdade, política. As cúpulas do Ministério Público sempre preferiram investir em temas capazes de projetar politicamente os promotores, tornando-os simpáticos aos olhos da população, e desprezaram, por desgastantes, questões importantes, como a fiscalização da legalidade e da ética na segurança pública. O procurador-geral Luiz Antonio Marrey tem o mérito de efetivar o que só estava na promessa da lei.
A oportunidade do ato é inquestionável. Basta notar que a polícia não desenvolve, de regra, no Brasil, investigação que mereça esse nome. Nunca parte do crime para os suspeitos. Faz sempre o contrário: pessoas são empiricamente selecionadas e, muitas vezes só por conta de seus antecedentes, são tidas como possíveis autoras de crimes. Num jogo de encaixar, os crimes de autoria desconhecida vão sendo atribuídos aos suspeitos de sempre.
Está certo que os governantes nunca trataram de aparelhar a polícia para o trabalho científico. O problema é que, no afã de sobrepujarem tal desaparelhamento e imbuídos da falsa idéia de que assim agem em nome da sociedade, para dizer o mínimo, maus policiais cometem ilegalidades todos os dias.
Não se pode negar que a atual Corregedoria da Polícia tem sido séria na apuração dos casos que lhe são levados. Mas aquela atividade episódica não basta. Os bons policiais deveriam aplaudir a fiscalização externa cotidiana a ser exercida pelo Ministério Público. Não têm nada a perder.
Sobram razões para que se fiscalize a polícia. Na periferia das grandes cidades, a morte violenta aparece como imposição do Estado, fruto de desmedida repressão policial. A tortura, banida para fins políticos, persiste como método de "investigação". Há corrupção e episódios de apropriação privada dos serviços policiais por representantes de setores hegemônicos da sociedade, que, em crise de cidadania, estão pouco se importando com a ética na atividade repressiva ou investigativa. Cidadãos pobres são submetidos a humilhações quando abordados em "atitude suspeita", jargão policial cujo exato conteúdo nunca ninguém conseguiu definir.
Há também o problema do crime organizado, em cuja essência está a idéia de relação com o poder econômico ou político. Não há no Brasil crime organizado sem conivência ou participação da polícia. Os jornais frequentemente revelam isso.
Enfim, por tais razões, já é tempo de dar um basta no controle, que a polícia sempre exerceu, de toda a atividade repressiva, dizendo, sem qualquer fiscalização, o que o promotor deve saber e quais fatos cabe ao Judiciário julgar. Vem em boa hora o controle inverso.
Resta pensar agora no controle das Polícias Militares, que, além de tudo, querem, absurdamente, manter tribunais exclusivos, destinados a julgar os atos de seus membros. Como fazê-lo? Quem tiver idéias sobre o assunto, que se manifeste.

Dyrceu Aguiar Dias Cintra Junior, 41, é juiz de direito em São Paulo e membro da Associação Juízes para a Democracia.

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