São Paulo, sexta-feira, 8 de novembro de 1996
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Operárias da história

JOSÉ DE SOUZA MARTINS

a escritora italiana Linda Bimbi, há tempos, desejava escrever um livro sobre uma mulher brasileira, cuja biografia fosse ao mesmo tempo uma espécie de caso emblemático da grande e difícil luta das mulheres para entrar no cenário da história de um país marcado pela pobreza e, durante longos anos, pela repressão. Um país em que a condição feminina não favorece a transformação da mulher em ativa e, sobretudo, visível protagonista da história.
Tendo vivido muito tempo em nosso país e grande conhecedora da América Latina, sabia da história pessoal de várias mulheres que tinham tudo para reproduzir o destino cinzento, penoso, frequentemente humilhante de tantas outras mulheres. Mas também mulheres que haviam contrariado a história, que haviam se insurgido, por força das circunstâncias, contra pretensos determinismos. E que frequentemente pagaram o preço dessa insurgência. Dentre vários casos fascinantes que poderiam retratar o que é ser mulher no Brasil, e o que é o Brasil na perspectiva de uma dentre muitas mulheres ativas e lúcidas, acabou se concentrando na história pessoal de Luiza Erundina.
Se Luiza cabia perfeitamente como personagem de uma história vista assim, história de um Brasil excludente, de suas tensões, de seus dilemas, Linda Bimbi coube perfeitamente como autora da história dessa surpreendente brasileira. É que Linda, que já escrevera a comovente história da salvadorenha Marianela Garcia, assassinada pela ditadura daquele país, e a não menos dramática história de sua comunidade religiosa, acossada pelo Vaticano e pela ditadura militar brasileira, era de certo modo, ainda que em lugares diferentes, protagonista da mesma história. Quase que se pode dizer que este livro é, no melhor sentido da palavra, uma história de mulheres, uma visão da vida a partir não só de uma história do viver, mas também da história de um modo feminino de ver a vida e, sobretudo, o lado da vida que muitos consideram território do homem, que é a política.
Linda Bimbi nos põe na condição de ouvintes da narrativa autobiográfica de Luiza Erundina de Sousa, filha de um camponês pobre do Nordeste brasileiro que, como milhares de seus conterrâneos, foi levada pelas turbulências da vida -a seca, a pobreza, a falta de alternativas- para a cidade grande e rica no começo dos anos 70, os anos violentos da ditadura militar. Levava na bagagem fragmentos de esperança, vontade de completar seus estudos e a consciência de que aos pobres não resta chorar -cabe lutar. Lutar pela equidade, pelo seu reconhecimento como pessoas dignas de respeito e possuidoras de direitos, como cidadãs. Luiza tinha tudo para querer isso: mulher, pobre, filha de camponeses e nordestina. Como ela mesma diz, só faltava ser negra. O poder está usualmente longe dessa identidade sem perspectiva, desse vazio de futuro, desse destino de subalternidade e de solidão na história.
Tradicionalmente, no Brasil, a biografia de pessoas como ela é biografia marcada por amplas possibilidades de ascensão social. De fato, esta confissão autobiográfica de Luiza a Linda nada tem de espetacular, nada tem de diferente em relação ao transcorrer da vida de milhões de seus patrícios, seus iguais e seus irmãos. Nada. Erundina não faz a maquiagem de sua inserção na história, para auto-revelar-se diferente e especial. Linda percebeu que a história de Erundina não se deixa invadir subitamente pelo épico das grandes conquistas pessoais. Ao contrário, vê nela a história da mulher comum que impõe pelo confronto e pela luta o reconhecimento do épico, do relevante, do que tem sentido naquilo que é comum e naqueles que são comuns. Há uma subversão de valores, nessa descoberta e nessa perspectiva, em relação ao dominante e ao estabelecido.
Por isso, o livro é muito mais que o relato da história de uma pessoa. É sobretudo um grande painel sobre um novo tipo de gente que proclama a simplicidade e a subalternidade de sua condição como sendo a própria chave para compreender este novo momento da história de um país como o Brasil.
A eleição como prefeita de uma das maiores cidades do mundo não foi um prêmio para o enorme senso de responsabilidade social e política de Luiza. Mal recompostos da surpresa e do susto de terem perdido o controle da administração pública dessa importante fortaleza do capitalismo, que é São Paulo, os grandes capitalistas (e também os pequenos), os políticos reduzidos à condição de vassalos dos grandes interesses econômicos e os beneficiários de múltiplas formas de corrupção política trataram de organizar e declarar guerra à pequena mulher que veio da seca do sertão e da periferia pobre da cidade.
Todos os obstáculos, lícitos e ilícitos, foram levantados contra o seu governo. Tudo vencido com a paciência histórica de quem se dispõe a decifrar os mistérios do poder para colocá-lo a serviço da sociedade, uma inversão subversiva da relação entre o Estado e o povo. Erundina é, certamente, uma das melhores expressões dessa revolução social e política que, pela primeira vez, põe o país em face de possibilidades democráticas efetivas, participativas e criativas.
Mas, Luiza descobriu também que não só a direita, os corruptos, as oligarquias não podem suportar essa subversão histórica. Ela encontrou adversários e críticos no interior de seu próprio partido. Seus próprios companheiros tiveram dificuldade para entender as sutilezas da revolução silenciosa em que se ampara a chegada ao poder, na própria fortaleza do inimigo e do opressor, de uma mulher que veio de longe e que não estava nos cálculos dos que fazem o jogo do poder. Nem podem compreender o sentido revolucionário da transformação dos movimentos populares em sujeito político num país oligárquico.
Por que, no entanto, Luiza chega ao fim de suas confissões autobiográficas como se a trajetória não estivesse concluída? Porque Luiza não está em busca de ascensão social. Renunciou a isso desde o começo de sua vida, que a privou até mesmo de infância: "Parece-me que nunca fui criança, parece-me que sempre fui adulta". Essa hipoteca a ascensão social não paga, essa ferida os êxitos pessoais não curam. Porque, como todos os que conseguem compreender o grave sentido dessa privação e que, por isso mesmo, se entregam ao exercício da doação pessoal, da gratuidade e do serviço aos desvalidos, Luiza não é ela mesma. Luiza está entre aquelas pessoas que têm o privilégio e o mandato de ser personificação de um sonho de seus iguais, o sonho de redenção dos seres humanos que até aqui têm sido privados da condição de gente. É o fascínio dessa enorme diferença em relação a biografias similares, mas concluídas pela ascensão, pela riqueza e pelo poder, que faz com que, no livro, Luiza, a operária da história, fale, e Linda, a outra operária, escute por todos nós. E nos contem uma saga de mulheres que falam o idioma da esperança.

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