São Paulo, sexta-feira, 8 de novembro de 1996
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A montagem de uma farsa

IRENE CARDOSO

essas duas felizes expressões -"ajeitando no espaço" e "ajeitando no tempo"- são utilizadas pelo almirante e ex-ministro do Superior Tribunal Militar, Júlio de Sá Bierrembach, para a sua reconstituição do caso Riocentro e para a leitura deste livro. "Ajeitando no espaço, cerca de meio metro à direita e um pouco embaixo, foi encontrada a posição ideal para a bomba na 'solução' que pretenderam nos impingir mas que a ninguém convenceu" -"solução" que encobriu o fato de a bomba ter explodido no colo do sargento agente do DOI-Codi do 1º Exército; o "meio metro à direita e um pouco embaixo" abriam a possibilidade para a versão de que radicais de esquerda pudessem ter realizado o atentado. "Ajeitando no tempo" refere-se à "elástica concessão de anistia, em 1988": "num passe de mágica, a anistia, que era limitada a agosto de 1979, cobriu o crime ocorrido em 30 de abril de 1981 no Riocentro".
O relato do almirante Júlio de Sá Bierrembach é fartamente documentado pela transcrição de peças processuais e por material da imprensa. A sua força vem ainda da sua posição de ministro do Superior Tribunal Militar, que participou dos julgamentos do caso Riocentro, de 1981 e 1985, do seu voto contrário ao arquivamento do IPM e da documentação que reuniu sobre o julgamento de 1988, embora dele não tivesse mais participado por já se encontrar aposentado.
Diferentemente da postura militar do "pacto de silêncio", que vigorou até recentemente e que só agora começa a ser rompido, a posição do almirante, sempre tornada pública, foi, desde 1981, a da necessidade da apuração do caso até as suas últimas consequências, a partir da sua visão militar, que consta do seu voto naquele ano, de que "o procedimento de uns poucos militares não pode comprometer a grandeza de uma Força Armada do porte do Exército de Caxias". Visão válida tanto para a direita quanto para a esquerda, como insiste em sublinhar: combater o terrorismo, "qualquer que seja a sua origem". Não é casual neste seu voto de 81 a referência à esquerda, quando afirma que "há pouco mais de 10 anos, num período crítico de guerrilhas urbanas na capital de meu Estado, tivemos o deplorável caso da deserção do capitão Lamarca, bandeando-se, acompanhado de uns poucos subalternos e levando armas e munições de seu quartel. A ocorrência comprometeu o Exército? Absolutamente!".
Sua decisão, hoje, 15 anos depois do episódio, de escrever e publicar este dossiê, no momento em que concluía seu livro "1954 a 1964 - Valeu?", diferencia-se de posições contemporâneas de outros militares, a respeito do caso Riocentro e da questão da revisão do passado recente, relativo ao período da ditadura militar no Brasil. Tais posições consideram que não é o caso de se desenterrar o passado, justificado pelo fato de que o que houve foi uma guerra e que na "guerra não se pode lamentar as consequências". É o caso, por exemplo, da posição assumida, em 1992, pelo general Leônidas Pires Gonçalves, o mesmo que, em 1985, era ministro do Exército do governo Sarney e que se manifestou publicamente contra a reabertura do inquérito do Riocentro.
As expressões "ajeitando no espaço" e "ajeitando no tempo" definem a interpretação do almirante Bierrembach, documentada passo a passo, no sentido de mostrar a montagem do que ele considera a "farsa" do inquérito do Riocentro, e a permanência da questão "quais os responsáveis pela impunidade?", exaustivamente recolocada por ele ao longo do livro, em chamadas com destaques. Mais do que isto, o dossiê permite a percepção detalhada, a partir do episódio, do poder de manipulação de uma memória coletiva, naqueles anos da "abertura" política, pela "solução" dada ao inquérito, pelos arquivamentos do IPM nos julgamentos no Superior Tribunal Militar, em 1981 e 1985, e, finalmente, em 1988, pela "extinção da punibilidade dos autores" (nunca identificados) com a interpretação elástica da Anistia (Emenda Constitucional nº 26, de 1985), em que foi omitido o parágrafo 2º, que delimitava a sua abrangência ao período compreendido entre 2 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979.
No entanto, como afirma o almirante Bierrembach, se a impunidade permaneceu, a versão construída no IPM, conduzido pelo coronel Job Lorena de Sant'Anna -que substituiu o coronel Luiz Antonio do Prado Ribeiro, que se retira do inquérito "por motivos de saúde"- jamais se sustentou, desde o início, basicamente devido ao trabalho da imprensa. Segundo ele "não fosse a ação da imprensa, nas primeiras horas e nos primeiros dias, talvez até hoje fossem ignorados os nomes do morto e do ferido e qual a origem de ambos". Porém, mais do que isso, afirma: "A imprensa nunca deixou o assunto morrer. Quando o arquivamento é indevido, acontece isso. A habilidade do jornalista desarquiva e põe em sobressalto as consciências que não podem estar tranquilas". Além do fato de o material da imprensa constituir-se em fonte documental do seu relato, o papel da imprensa é ainda destacado quando da Representação nº 1061-7-DF, gerada pelas "matérias publicadas na revista 'Veja', de 23 de setembro de 1987, e no 'Jornal do Brasil', do dia 27 do mesmo mês", no entanto indeferida por "falta de amparo legal", em 15 de março de 1988, pelo Superior Tribunal Militar.
O episódio do Riocentro, que poderia ter tido dimensões catastróficas -mais de 20 mil pessoas participavam de um festival comemorativo do Dia do Trabalho-, foi o último atentado grave, de uma série que teve início em janeiro de 1980. Nenhum desses atentados foi esclarecido. No caso Riocentro, os responsáveis ficaram impunes.
A importância da publicação do livro do almirante Bierrembach, hoje, está ligada ao fato de que o caso Riocentro se constituiu como um dos grandes temas interditos para a memória histórica do passado recente da sociedade brasileira, sob a ditadura militar. Acontecimento de extrema gravidade, cujos desdobramentos produziram a renúncia do general Golbery, em agosto de 1981, e que, se devidamente investigado, ameaçaria a rede clandestina da repressão. O conjunto dos atentados expressava a posição da linha dura militar, contrária ao processo, mesmo lento e sob controle das Forças Armadas, da abertura política. O encobrimento do caso Riocentro significou, para a posição militar vencedora, a preservação da imagem das Forças Armadas, impedindo que o episódio se transformasse na ponta do iceberg, que poderia revelar a dimensão do poder autônomo e paralelo que as organizações repressivas tomaram no Brasil.
O significado do livro deve ser entendido, ainda, no registro de um discurso militar representado por alguém que assumiu os mais elevados postos na Marinha, até a sua nomeação como ministro do Superior Tribunal Militar, no período da ditadura no Brasil. Discurso que, ao se distinguir das posições da linha dura militar, em nenhum momento deixa de se considerar como expressão legítima da "revolução" de 64.

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