São Paulo, sexta-feira, 8 de novembro de 1996
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Contra o Exame Nacional de Cursos

MARIA SYLVIA CARVALHO FRANCO

A sra. Eunice Durham, na TV Cultura, afirmou que o "provão", embora imperfeito, garantiria a qualidade mínima do ensino universitário. Seu exemplo é elucidativo: há advogados, disse ela, que não sabem fazer uma petição. Redigir tal documento avaliaria algum saber jurídico? Sim, para ignaros cujo alvo seja repor o rotineiro e resumir-se à eficácia aparente.
Permanecendo no campo do direito: como avaliar, numa igualdade abstrata, alunos saídos de academias tradicionais ou vindos de cursos atentos a problemas novos, como o direito ecológico ou o das minorias? Nem tudo é comensurável, nem é bom que o seja, diria um velho filósofo. Quais as bases, os resultados e decorrências práticas dessas orientações tão diversas no campo da teoria, do ensino e do exercício jurídicos? Isso, justamente, forma o bom profissional.
O editorial deste periódico, ontem, defende o exame, argumentando que "todos os setores da sociedade (...) estão sob permanente avaliação", não havendo motivo para isentar-se a universidade.
Correto; mas mediante quais critérios? A Folha define os seus padrões, passa pelo juízo de seus dirigentes, pelo crivo interno de seu ombudsman e pela crítica dos leitores: uns e outros têm perfil definido, orientando-se por exigências e expectativas que não se confundem com as de outros periódicos. O assinante da Folha recusa "Notícias Populares"; o leitor deste é alheio ao "elitismo" de um caderno como o Mais!. Os próprios jornalistas lutam contra uma homogeneidade que lhes foi imposta, o requisito de um diploma que não responde ao exercício de seu mister.
Provas que uniformizam o singular implicam em suprimir diferenças essenciais. No pólo oposto, um exame compreensivo exigiria especialistas capazes de avaliações pertinentes e qualitativas nessas múltiplas áreas.
Se passarmos para o campo, mais enredado ainda, das ciências exatas, das artes, das letras, da filosofia, como discernir e abranger as diferenças nos recortes teóricos, na escolha dos métodos de transmissão do saber? E quem arcaria com o tempo lento e com o preço alto de preparo, aplicação e escrutínio desses exames especializados? Certamente não governantes que, sem pejo, propõem cortes em programas basilares de saúde pública, como vacinação e combate a endemias.
E por que não investir em avaliações institucionais que vêm sendo implementadas? Em vez disso, assaltam-nos o desperdício e o gasto improdutivo, marcas dos espetáculos de massa, ao gosto das autocracias burocráticas.
Com essa medida, mais um forte golpe atingirá o processo educativo no Brasil. A escola pública elementar e média já foi devastada: instalações precárias, salários reles, desatenção ao aluno, miséria do ensino. As escolas particulares, ávidas de lucros e de garantias exorbitantes, oferecem, junto com os cursinhos, um ensino propedêutico aos vestibulares das escolas superiores mais credenciadas, as universidades públicas.
Alunos ricos em escolas gratuitas: escândalo, deblateram os "liberais", agitando o mote da universidade paga.
Nem sempre a premissa acima é verdadeira, e a conclusão dela aduzida perfaz um sofisma. Se os ricos têm mais acesso à escola gratuita, esse vício produziu-se pelo desmazelo nos outros níveis da instrução pública.
Depois de completar-se, por iniciativa dos governantes, o desmonte de um ensino mais aberto ao trabalho dos intelectualmente capazes, com menos privilégios, recorre-se a uma chicana ideológica: interpela-se a gratuidade do ensino superior universal, arguindo-se com o óbvio -é injusto que ricos usufruam de recursos públicos-, mas escamoteando o processo que produz, reitera e amplia essa iniquidade. Fecha-se um círculo perverso: escola secundária pública deficiente, ensino privado caro, exclusão dos pobres e vantagem dos ricos no uso dos bens coletivos, e, em nome disso, comercializa-se a universidade. As escolas privadas agradecem. A pesquisa, o saber livre, a formação de cientistas sucumbem.
Os métodos que aniquilaram o ensino médio, favorecendo empresas produtoras de mãos aptas a fazer cruzinhas em vestibulares genéricos, são transferidos, agora, para o final dos cursos superiores. Aventou-se que a ditadura devastou a universidade e que, por sandice de seus membros néscios, ela tornou-se vítima das trevas, nada restando agora senão cinzas. O provão, em vez, é portador das luzes, capaz de recolher os restos e orientar os reparos.
Nós, que sofremos os malefícios ditatoriais no interior da universidade, lutamos, de muitos modos, para que a liberdade do pensamento, a disciplina da pesquisa, o padrão de ensino não morressem.
Os supostos redentores, intelectuais "de esquerda" no poder, cumprem um programa obscurantista, ignoram limites, empreendem o que a direita não ousa. Esta encontraria obstáculos; aqueles recebem apoio na propaganda pesada dos seus adeptos. Não são os quartéis que, agora, vandalizam as escolas. Os que se vangloriam de serem os perseguidos políticos de ontem radicalizam a liquidação do pensamento, num processo de censura inaudito: só chegam à vida profissional os que respondem, para gáudio dos inquisidores, aos itens do moderno "Malleus Maleficarum".

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