São Paulo, quinta-feira, 14 de novembro de 1996
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Dívida e(x)terna

PAULO NOGUEIRA BATISTA JR.

A julgar pela maior parte do noticiário econômico brasileiro, o problema da dívida externa está morto e enterrado. Há alguns anos, uma revista brasileira de grande circulação proclamou, em matéria de capa, com letras garrafais e pontos de exclamação, o "fim" da dívida externa brasileira. Se não me falha a memória, o título era: "Acabou a dívida externa!"
Um conhecido meu, que é um sujeito seriíssimo (não ri nem de piada), costuma me perguntar: "Por que é que você perde tanto tempo com bobagem?"
Ah, mas se suprimíssemos a bobagem dos nossos hábitos, metade da imprensa nacional (incluindo aí bom número de economistas) ficaria reduzida, para sempre, ao mais completo e total silêncio.
Naquela ocasião, o motivo para a celebração um tanto prematura do fim da dívida era a conclusão, pelo governo Collor, das linhas gerais de um acordo com os bancos estrangeiros, que seria arrematado alguns anos depois durante a gestão de Fernando Henrique Cardoso no Ministério da Fazenda.
Qualquer analfabeto em finanças, se tivesse acesso aos números básicos, teria percebido o óbvio: o acordo dizia respeito a menos de 40% da dívida do país e trazia concessões bastante limitadas. Não seria, por si só, capaz de alterar o quadro geral do endividamento brasileiro.
Se a dívida externa saiu das manchetes nos últimos tempos, não foi por causa desse e de outros acordos de reestruturação assinados entre 1991 e 1994.
O que houve foi uma modificação substancial do contexto financeiro internacional. Nos anos 90, caíram as taxas de juro internacionais e ampliou-se a disponibilidade de capital externo para países como o Brasil.
Sem ter curado inteiramente as feridas da crise da dívida externa dos anos 80, o Brasil foi lançado em novo ciclo de endividamento. O cadáver proclamado pela grande revista começou, então, a manifestar um intrigante e pouco comentado dinamismo.
Peço a atenção do leitor para alguns números. Calma, calma. Sei perfeitamente que isso é cansativo.
Mas a discussão pública de temas econômicos nunca vai sair da idade da pedra enquanto economistas, jornalistas econômicos e o grande público não se dispuserem a examinar com cuidado os grandes números da economia nacional e internacional.
O serviço da dívida (juros mais principal) vem apresentando significativo crescimento nos anos recentes. As despesas brutas de juros, que oscilaram entre US$ 8,1 bilhões e US$ 9,5 bilhões entre 1991 e 1994, alcançaram US$ 10,6 bilhões no ano passado. Em 1996, devem ficar acima de US$ 12 bilhões.
As amortizações de principal da dívida de médio e longo prazos passaram de US$ 9,3 bilhões em 1993 para US$ 11 bilhões por ano em 1994 e 1995. Em 1996, alcançarão quase US$ 13 bilhões.
Portanto, o serviço da dívida chegará a mais de US$ 25 bilhões neste ano.
No ano que vem, as amortizações serão de US$ 18 bilhões, um aumento de cerca de 40% em relação ao previsto para 1996. A despesa bruta de juros também deve crescer, podendo ficar por volta de US$ 14 bilhões.
Desse modo, o serviço da dívida alcançará US$ 32 bilhões em 1997. Note-se que esse número não inclui os vencimentos do principal da dívida externa de curto prazo, que precisam ser refinanciados de forma mais ou menos contínua ao longo do ano. Em junho de 1996, a dívida de curto prazo totalizava US$ 32 bilhões.
Sem levar em conta todos esses dados, é rigorosamente impossível compreender porque os mercados financeiros ficam histéricos com as notícias de deterioração da balança comercial.
A razão fundamental é que o desequilíbrio comercial se adiciona à crescente necessidade de recursos decorrente da dívida externa e de outros passivos internacionais acumulados pelo país.
O leitor poderá indagar: "Mas se os números são esses, meu Deus, como é que quase ninguém fala na dívida externa?"
O relativo silêncio em torno do assunto só é possível porque o Brasil vem conseguindo refinanciar esses compromissos com a captação de novos recursos externos. E o imediatismo é um dos traços fundantes da psicologia brasileira.
O dia em que cessar o refinanciamento do serviço da dívida, vai ser um deus-nos-acuda.
Como escreveu o economista John Williamson, em trabalho publicado em 1993, nos países em desenvolvimento o acesso a recursos externos é, às vezes, considerado como sinal de êxito e um fim em si mesmo.
"A triste história do envolvimento da América Latina no mercado internacional de capital", alertou, "deveria ser suficiente para demonstrar o erro de identificar endividamento com sucesso."
Reparem que quem o diz -e ele sabe o que está dizendo- é um dos principais propagadores do "consenso de Washington" -aliás, o inventor da expressão. Se houver uma nova crise de endividamento, não poderemos nem mesmo botar a culpa no referido "consenso" e nas doutrinas "neoliberais".
(Este artigo é dedicado ao meu amigo Odilon Guedes, economista obcecado pelo tema da dívida externa. Uma pequena homenagem a um grande vereador.)

E-mail: pnbjr@ibm.net

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