São Paulo, sexta-feira, 15 de novembro de 1996
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Os véus da fraude

ANNIBAL FERNANDES

O fim do tíquete-alimentação, pretendido pelo governo, é um ato insensato. Os defensores da idéia tentam alinhavar argumentos que convençam os homens de boa vontade da necessidade da medida. Faço parte dos que têm má vontade com estripulias oficiais.
Em primeiro lugar, o governo justificou a extinção batendo na tecla da fraude. Os tiqueteiros -atravessadores que compram o tíquete com deságio e o revendem pelo preço de face no mercado- precisavam ser punidos pela irregularidade. A fama que eles conseguiram da noite para o dia é de tirar o chapéu para a orquestração do governo. Ou alguém acredita que a ação de poucos tiqueteiros é um problema nacional de sérias proporções?
Pretender acabar com o sistema porque existem fraudadores é raciocínio tortuoso. A fraude acompanha a norma legal como a sombra acompanha o nosso corpo.
Não é à toa que os italianos dizem: "Fatta la legge, trovato l'enganno" ("Faça a lei e encontre uma brecha"). Se a fraude determinasse o fim da lei, seria preciso acabar com o casamento porque existe a bigamia. Ou extinguir a instituição do cheque porque existem os cheques sem fundos. As distorções precisam ser corrigidas na busca do aperfeiçoamento de qualquer sistema.
Como os vilões tiqueteiros começaram a perder ibope, entrou em cena o custo do benefício. Cálculos apressados do Ministério da Administração e Reforma do Estado indicavam que o fim do tíquete representaria economia de R$ 50 milhões.
O pulo do gato do direito para a economia esbarrou no "Diário Oficial". Diversos extratos de contratos (de refeição) publicados no "DO" demonstram que as empresas de alimentação oferecem descontos e alongamentos do prazo de pagamento para o governo. Só em cinco órgãos pesquisados na publicação oficial, a economia chega a R$ 11 milhões. São 190. Em síntese, o tíquete não traz prejuízo aos cofres públicos.
Como não dá para contestar a versão do "Diário Oficial", os ilusionistas do governo colocaram na conta do tíquete-alimentação cerca de 4.000 funcionários encarregados da distribuição e licitação desses papéis.
Vamos aos fatos. Os funcionários da administração pública que compram tíquetes -por meio de processos licitatórios- compram de tudo. De papel higiênico a máquinas e equipamentos. Não há, nas comissões permanentes de licitações, funcionários contratados especialmente para cuidar dos tíquetes-alimentação.
Ao acabar com esse benefício ao trabalhador, o governo nada economiza, pois as comissões de licitações continuarão no exercício de suas funções. Com qualidades e defeitos.
Não há também funcionários públicos contratados para administrar o tíquete. Eles fazem parte do departamento de pessoal e recursos humanos e realizam tarefas típicas dos cargos, como folha de pagamento, férias, checagem do ponto, transporte e saúde.
Se não realizam, é preciso que o governo investigue para ver o que está errado. Certamente, não é o tíquete-alimentação que atrapalha o andamento do trabalho.
Quando análises sobre o tíquete não se perfilam do lado oficial, surgem insinuações de que se trata do lobby do setor. Vozes indignadas lembram que as empresas de tíquete lucram com o negócio.
Ora, elas prestam serviço e devem ser remuneradas. Numa sociedade capitalista, o lucro, longe de ser pecado capital, é desejável. E críticas deveriam ser bem-vindas, não tratadas a ferro e fogo.
Tirada a máscara dos argumentos mágicos governamentais, surge a verdadeira face da troca: a retirada dos direitos sociais.
Sem os véus da fraude e maquiagem da economia, o que se vê é a tentativa de lesar os trabalhadores de uma conquista. Hoje, é o tíquete-alimentação; amanhã, a jornada de trabalho; depois de amanhã, o 13º salário... e "la nave va". E vai mal.
Como os sindicatos vão incorporar o valor do tíquete nas negociações salariais se o benefício sumir do mapa? Maquiavel deve ser leitura de cabeceira dos integrantes do ministério.
O governo não precisa criar um arsenal de efeitos especiais para justificar o fim do tíquete-alimentação. Basta pagar salários dignos que esse benefício perde a força. Com o achatamento salarial, ele se tornou essencial para a dieta do trabalhador.
Ao retirar o tíquete-alimentação, cria mais um problema social em um país que derrapa nas esquinas e se choca de frente com a realidade dos faróis. A criança estende a mão; o marginal, a faca; e o vendedor ambulante, o pano de chão. Esse é o nosso pano de fundo.

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