São Paulo, sexta-feira, 15 de novembro de 1996
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A Califórnia e o Nordeste

MAILSON DA NÓBREGA

Sábado passado, revisitei o vale do Napa, na Califórnia. Em 1984, secretário-geral do Ministério da Fazenda, estivera na região com outros funcionários federais e governadores do Nordeste. Fomos estudar projetos de irrigação no oeste norte-americano.
O vale do Napa dista uma hora de automóvel de San Francisco. Impressiona pelo vigor de sua economia, pela riqueza conspícua e pela beleza dos parques e vinhedos.
Dali saem excelentes vinhos das melhores cepas. Turistas e moradores locais se apinham em sessões de degustação, visitas às fábricas e refinados piqueniques.
A comparação com o Brasil é inevitável. O trajeto é árido como os sertões nordestinos. O panorama muda subitamente nas áreas irrigadas, tal qual nos cenários do nosso vale do São Francisco.
A Califórnia é um sucesso e tanto. Até 1848, não passava de um solitário posto avançado em uma imensa região semidesértica, quando sua quietude foi interrompida pela descoberta do ouro.
A agricultura nos vales férteis, mesmo sob a adversidade do clima (como no semi-árido nordestino), foi o refúgio para muitos dos que não conseguiram sucesso no garimpo.
No final do século, San Francisco enfrentou oito anos de seca. Nas chuvas, as enchentes destruíam anos de trabalho. Irrigar era a saída para resolver os dois problemas.
Em 1902, o governo federal criou o "Bureau of Reclamation", que inspirou a nossa Inspetoria Federal de Obras contra as Secas em 1909 -Ifocs, depois transformada em departamento nacional (Dnocs) em 1945.
O trabalho do birô viabilizou a irrigação no oeste, principalmente na Califórnia, na qual se cultivam hoje mais de 200 espécies e de onde se origina um terço da oferta nacional de frutas e vegetais industrializados.
Em 1947, a Califórnia se tornou o maior produtor rural dos EUA. Em 1965, suplantou Nova York como o Estado mais rico da federação.
Há outros fatores que explicam esse êxito: a descoberta do petróleo em 1895 em Los Angeles; mais recentemente, a indústria de alta tecnologia do vale do Silício, e, óbvio, a excelência de suas universidades e o "ethos" capitalista de agir.
A agricultura foi, contudo, um passo fundamental. Desenvolvi o tema no livro "Desafios da Política Agrícola" ("Gazeta Mercantil"/CNPq, São Paulo, 1985).
No Brasil, quase um século de obras contra as secas beneficiou mais a burocracia e os políticos fisiologistas do que a irrigação do semi-árido. Com os projetos privados, a área ali irrigada corresponde a míseros 500 mil hectares, 10% da californiana.
No retorno, li a recente obra do Fórum Nacional ("O real, o crescimento e as reformas", João Paulo R. Velloso, coordenador, Rio de Janeiro, José Olympio, 1996).
Lá estava, por coincidência, o excelente artigo de Roberto Cavalcanti e Gustavo Maia, dos melhores que já li sobre o drama do Nordeste ("Os desafios de uma dupla inserção").
Os autores crêem que a região tem futuro. Ela dispõe de trunfos para viabilizar o seu desenvolvimento, entre os quais um PIB semelhante aos da Venezuela e Grécia.
A transformação produtiva, a partir dessa base, poderia ocorrer prioritariamente na reestruturação e especialização industrial, na modernização agrícola e industrial e na expansão do turismo e dos serviços modernos.
Os desafios são, todavia, enormes. Será preciso, afirmam, uma revolução nos recursos humanos e a formação de uma mentalidade moderna, isto é, "a aquisição de uma nova cultura".
Sugerem mudar a gestão dos incentivos fiscais. O diagnóstico sobre a Sudene é preciso e duro: o órgão padece de um "congelamento no tempo de muitas formas do pensar e do agir institucionalmente, cada vez mais inadequados às circunstâncias emergentes".
Eles não mencionam a questão da mentalidade das elites nordestinas e de parte expressiva de sua classe política. Sua atitude quinhentista, paternalista e patrimonialista constitui sem dúvida sério obstáculo para vencer o inaceitável grau da pobreza regional.
O artigo é um alento. Estimula a refletir sobre a idéia de que o Estado, mesmo quebrado, ainda terá papel irrecusável no desenvolvimento nordestino. Deve-se, todavia, mudar radicalmente a forma de fazê-lo. Exemplos não faltam no sucesso californiano.

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