São Paulo, sexta-feira, 15 de novembro de 1996
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Goethe é mais Machado do que Shakespeare

CARLOS HEITOR CONY
DO CONSELHO EDITORIAL

Se ainda não contei, conto agora: quando Francisco Mignone fez 80 anos, fui entrevistá-lo para uma revista carioca. Pedi na pesquisa a pasta do autor das "Valsas da Esquina" e tomei apontamentos. Uma das primeiras perguntas foi sobre as suas preferências musicais.
Aos 40 anos, ele afirmara que tinha um Deus: Johann Sebastian Bach. Aos 60, ele mudara seu incenso para um novo Deus: Beethoven. Eu queria saber se, aos 80, ele voltara a Bach ou continuava com Beethoven.
Mignone era um tipo. Na véspera, eu o vira ensaiar os bailarinos para um batuque que ele fizera, uma dança de negros que faz parte de sua última ópera, "Memórias de um Sargento de Milícias", baseada no delicioso romance de Manuel Antônio de Almeida e que seria estreada naqueles dias.
Apesar da idade, Mignone era aquilo que as letras de tango chamam de "guapo". Ele pegou uma bailarina, empernou-a com violência e mostrou como deviam dançar num estilo próximo àquele que, no Rio, chamam de "gafieira".
O maestro ouviu minha pergunta e, com aquele jeito cínico que atribuem aos cariocas, abriu o jogo: -"Meu filho, aos 40 anos eu tinha de preferir Bach, do contrário iam cair em cima de mim. Aos 60, já não ligava muito para a opinião dos outros e admiti que preferia Beethoven, ficando mais perto da verdade.
Agora, aos 80 anos, não devendo nada a ninguém, confesso que passei toda a minha vida preferindo e amando Puccini. É o único autor que ainda me faz chorar e ser feliz, compreende?
Aquelas repetições, aquela maneira de fazer a orquestra acompanhar os diálogos, os temas de suas grandes heroínas...aquele coro nupcial da "Butterfly", o dueto do terceiro ato de "La Bohème", até hoje fico arrepiado com aquele diálogo de Scarpia e Tosca no Palácio Farnese..." (cito o texto da matéria que publiquei em 1979).
Sem me querer comparar com o maestro, acho que, tirante a minha alucinada e injustificada torcida pelo Fluminense Futebol Clube, que resiste a crises dramáticas e a vexames abomináveis, também fui mudando de opinião e preferências ao embate da vida e do tempo.
Como Mignone, já respondi numa enquete para o "Jornal das Letras", dos finados irmãos Condé, que meu autor favorito era Faulkner. Em Havana, numa palestra que fiz na Casa de las Americas, descaradamente mudei de opinião e proclamei meu amor por Cervantes.
No trivial variado, sempre que me indagam sobre a pedra angular da literatura, por comodidade e para ser entendido rapidamente, falo em Shakespeare. Se acham pouco, cito também Proust e Dostoievski.
Agora, que a idade da razão bateu para valer (na verdade, bateu bastante tarde no meu caso), dou-me ao direito de dizer a verdade: embora reconhecendo o vôo curto e a distância de suas circunstâncias culturais, o meu grande autor foi, é e será sempre Machado de Assis. Ele está para mim como Puccini estava para Francisco Mignone.
Quanto mais aprendo ou desaprendo com a vida e com os homens, mais me identifico com aquele mulato gago e epilético que botou na cabeça do cão de Quincas Borba (cão que se chamava Quincas Borba como o dono) aquela "poeira de idéias" que começa com uma frase tão banal quanto as melhores frases de Shakespeare: "A vida não é completamente boa nem completamente má".
Dita por um homem, seria uma babaquice. Pensada por um cão -e cão de um louco!-, é a suma antiteológica do conhecimento moral e material a que o homem tem acesso e, em alguns casos, poder.
Outra preferência que andava escondida, e que só agora vou assumindo, é bem mais complicada e erudita. Trata-se de Goethe, que está mais distante de mim do que a mais distante estrela da galáxia.
Detestava-lhe aquele chapéu de bicha velha, aquela roupa preta com que ele patinava no gelo, o seu amor pela botânica e pela mineralogia, desprezava Werther e condenava até mesmo seu amor por Roma, amor que, em outro sentido, eu também tenho e mantenho.
Ao escrever meu primeiro livro, que tinha o pavoroso nome de "O Ventre", dei-lhe uma epígrafe óbvia, tirada de uma carta do apóstolo Paulo: "quorum Deus venter est" - aqueles cujo Deus é o ventre. Ênio Silveira, meu editor na época, gostou, mas achou a citação hermética demais, pediu-me outra.
Na pressa, com o livro já na terceira prova, apelei para um monólogo do Dr. Fausto, usando a clássica tradução de Gerard de Nerval: "...o homem treme diante de males que não o atingirão e chora continuamente os bens que não perdeu".
Outro dia, engaiolado num navio no meio do Mediterrâneo, reli mais uma vez a primeira parte do Fausto.
Por acaso, antes da viagem, lera com alguma pressa o "Goethe", de Pietro Citati (Companhia das Letras, tradução de Rosa Freire D'Aguiar).
O autor cita frequentes vezes a famosa comparação que Goethe fazia sobre Shakespeare e aqueles relógios em que, simultaneamente à hora mostrada, mostra-se toda a engrenagem que produz a hora.
Goethe é o contrário de Shakespeare. Mostra geralmente a mesma hora, mas esconde o jogo. E nisso, pasmem!, fica parecido com Machado de Assis.

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