São Paulo, domingo, 17 de novembro de 1996 |
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Menem mostra seu tango argentino na TV
FERNANDO DE BARROS E SILVA
Como é regra na TV, mais uma vez o resultado foi amplamente favorável ao entrevistado. Isso sempre é chato, mas neste caso se deveu menos à submissão do entrevistador do que ao formato do programa, que permite longas respostas e abre espaço para momentos de pura autopromoção. A despeito disso, Roberto D'Ávila talvez seja hoje o melhor entrevistador da TV brasileira. Sereno e firme, sabe provocar sem desrespeitar e toca de perto os pontos que interessam, combinação rara. Questões de forma à parte, o grande mérito da entrevista foi ter mostrado que Menem, por trás de sua aparência camponesa, pode representar algo como a verdade profunda do seu colega FHC. Ele seria, de certa forma, um FHC sem superego. E talvez antecipe o que será o FHC do segundo mandato caso a novela da reeleição se desenrole segundo o script preparado pelo governo. Isso tudo soa estranho. Afinal, para nós, brasileiros, é incontornável a impressão de que Menem é quase um personagem literário, um mau ator de si mesmo, uma espécie de canastrão que deu certo. As costeletas extemporâneas, a fisionomia acafonada, a paixão declarada pelo tango e pelo futebol, a amizade com Diego Maradona, o apelo constante à intuição e à frase direta, desprovida de firulas intelectuais -tudo isso contribui para compor um perfil que parece mais simplório do que de fato é. Não estão em jogo aqui as propaladas diferenças entre Brasil e Argentina, às quais se apegam os governistas a cada sugestão de que o tal efeito Orloff talvez seja mais do que uma simples metáfora. O ponto aqui é outro. Digamos que a simplicidade de Menem parece mais complexa que a complexidade de FHC. É como se ele nos fizesse ver, pela falta mesma dos recursos intelectuais que o outro esbanja, o tamanho da enrascada em que estamos todos metidos. Afinal, neste mundo de paradoxos em que vivemos, talvez o intelectual e o canastrão tenham trocado involuntariamente de papéis. Enquanto a cartilha decorada de um ilumina sem querer a verdade, a razão desenvolta e cheia de vírgulas do outro acaba ofuscando-a. Um exemplo. D'Ávila pergunta a Menem: "O sr. acha mesmo que o mercado regula tudo?". Resposta: "Totalmente. Eu acredito na teoria do mercado" etc. etc. Diante da mesma questão, FHC tergiversaria, faria piruetas mentais e acabaria nos convencendo a todos de que ele é a própria encarnação da nova esquerda. Por brutal que pareça a frase de Menem, a ouvidos escaldados ela soa menos cínica que uma outra, dita esta semana por um ilustre e refinado banqueiro, um dos autores do Plano Real, segundo quem o problema atual é saber "compatibilizar o capitalismo com um nível de desigualdade tolerável". "Desigualdade tolerável" é lindo, mas não para quem ainda tem olhos e tempo para ver o que se passa no país real. Poesia por poesia, sou mais Manuel Bandeira: "A única coisa a fazer é tocar um tango argentino". Próximo Texto: CARTAS Índice |
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