São Paulo, segunda-feira, 18 de novembro de 1996
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Ministro do STF quer uma mulher na suprema corte

NELSON DE SÁ
ENVIADO ESPECIAL A BRASÍLIA

José Celso de Mello Filho, o provável presidente do Supremo Tribunal Federal a partir de 1997, quer uma mulher na corte, a primeira em 172 anos.
O ministro, que aos 51 deve ser o mais jovem presidente da história do Supremo (mantida a tradição de eleger por antiguidade na casa entre os que não exerceram o cargo), quer adequar o Judiciário à sociedade contemporânea.
Sugere, mas ainda quer debater, o fim da Justiça Militar. Também levanta, para o debate da reforma do Judiciário, mecanismos de democratização. Questiona a atitude "imperial" do presidente FHC, com a "sistemática" edição de medidas provisórias.
Quer uma mulher já para a vaga de Francisco Rezek. Não deu nomes, mas em sua estante, indicada por ele, estão livros de Lúcia Valle Figueiredo, Maria Sylvia Zanella di Pietro e Carmem Lúcia Antunes Rocha, entre outras.
*
Folha - O sr., é o que me dizem, está sempre aqui, desde a manhã. Trabalhou no Carnaval...
José Celso de Mello Filho - Eu sou um "workaholic". Eu cheguei a ficar, no Ministério Público, seis anos sem férias. Agora, quando eu vim para Brasília, a situação se alterou, porque aqui o volume de processos é massacrante. Angustia este acervo enorme. A média é de 30 processos diários, por ministro. É irracional.
Folha - A crise do Supremo.
Mello - A denominada crise do Supremo. Quando Epitácio Pessoa foi ministro do Supremo, antes de ser presidente da República, ele julgou cem processos em sete anos. Cem processos em sete anos!, mas já então se falava em crise no Supremo. Hoje cada ministro está julgando 3.500 a 4.000 por ano. É desumano.
Folha - Com a nova Constituição, caiu para um terço o número de processos que chegavam ao Supremo, de 1988 para 1989. Mas passaram-se três anos e o volume cresceu para mais do que antes.
Mello - Para mais ainda. Quando a Constituinte instituiu o Superior Tribunal de Justiça, ela teve por objetivo, precisamente, resolver a chamada crise do Supremo. Nos primeiros momentos, teve-se a impressão de que tinha sido a solução adequada. Eu tomei posse em agosto de 89. Nas primeiras semanas e até o final de 89, nós falávamos "puxa, teremos todo o tempo do mundo para estudar". Foi um equívoco de todos.
Folha - Depois de cair o número de processos, por que é que imediatamente subiu?
Mello - É paradoxal, mas a crise é denotativa de um ponto positivo. O excesso de litigiosidade significa que o espaço da cidadania se ampliou. O Brasil viveu durante 21 anos sob um regime autoritário que asfixiou as liberdades públicas, que se pautou pela intolerância, que descaracterizou o próprio conceito de federação. Agora, não. Com a Constituição de 88, há uma expansão das liberdades, e isso faz com que o cidadão tenha consciência dos seus direitos. E quando esses direitos são violados, não apenas nas relações privadas, mas quando são violados, como vêm sendo violados de maneira sistemática e arrogante, pelo próprio poder público, então é justo que ele recorra ao Poder Judiciário. Hoje há uma nova atitude cultural, uma nova atitude política. As pessoas não aceitam mais uma sujeição passiva aos desígnios dos governantes.
Folha - O sr. falou de certo abuso dos governantes.
Mello - Certo abuso, não. Há muitos abusos, abusos que se revelam extremamente graves e evidenciam a cada momento uma conduta de desprezo à Constituição. As medidas provisórias são emblemáticas da posição típica de um presidencialismo imperial. Não é correto tornar a medida provisória um expediente ordinário de atividade legislativa. Sob esse aspecto, a medida provisória tem um inquestionável componente autoritário. Nada mais é do que a manifestação formal da vontade unilateral do príncipe, vale dizer, do governante. É ele quem, por uma manifestação unilateral de vontade, impõe determinadas prescrições à observância de toda a coletividade. E isso não é aceitável no contexto de uma formação social democrática, especialmente quando o chefe do Executivo é um homem que tem uma formação democrática. Isso me surpreende e me preocupa porque é prática que se tornou crônica na esfera da Presidência da República.
Folha - O que pode fazer o presidente do Supremo com relação à crise do Supremo?
Mello - É um pouco prematuro afirmar que eu serei o presidente. Obviamente, há uma tradição que se tem cumprido. De qualquer maneira, não falando de mim mesmo, é óbvio que, na condição de chefe de um dos poderes da República, ele tem condições para prosseguir neste debate nacional. E não apenas para debater, mas para propor soluções, discutindo com a sociedade civil, o Congresso.
Folha - O sr. poderia adiantar algumas das suas propostas?
Mello - Antes de mais nada, eu questiono a necessidade da Justiça Militar nos Estados. Não se justifica a sujeição dos policiais militares a uma jurisdição especial. Quanto à Justiça Militar da União, é preciso discutir a respeito de sua necessidade institucional. Se, eventualmente, militares das Forças Armadas delinquirem e praticarem delitos contra o patrimônio federal, aí está a Justiça Federal comum para julgá-los. Se praticarem crimes dolosos contra a vida, aí está o tribunal do júri. Então, eu diria que é importante discutir, sim, a necessidade institucional da própria existência da Justiça Militar federal. É um ponto que merece reflexão.
Aqui há um aspecto importante. Parece-me que o Superior Tribunal Militar teria julgado em 94 não mais do que 600 processos durante um ano, com a média de 40 processos por ministro, enquanto cada ministro do Supremo recebe por dia 30 novos processos. Então, esses dados... E é curioso, eu mandei buscar no banco de dados do Judiciário números que pudessem ser úteis. Por incrível que pareça, os que faltam são os da Justiça Militar. Eu tenho a impressão de que a análise comparativa poderia evidenciar a absoluta desnecessidade. Não tem sentido que a União mantenha um aparato judiciário custoso, não obstante a importância histórica que assumiu, no passado, a Justiça Militar, instituída já no início do século 19. Mas mesmo essa ancianidade da Justiça Militar a mim me parece superada pelas novas exigências que emergem da sociedade contemporânea.
Folha - Ainda com relação à reforma, como pode ser a democratização do Judiciário quanto à composição dos tribunais?
Mello - Falando da influência externa na composição dos tribunais, eu apenas registro uma experiência do direito comparado, que não é necessariamente a minha opinião, mas é importante trazer ao debate. No Japão, a Constituição de 46, que está em vigor, estabeleceu um sistema de aprovação das nomeações para a suprema corte. Uma consulta popular. A parte importante: "A nomeação dos juízes da suprema corte será revista pelo povo na primeira eleição geral dos membros da câmara dos representantes que se seguir à sua nomeação e será revista novamente na primeira eleição geral dos membros da câmara dos representantes após dez anos, e da mesma forma, assim por diante". É interessante, esse sistema.
Folha - A expectativa é que aconteça, nos próximos dois anos, uma renovação do Supremo, com dois, três ministros. O sr. acredita que possa se abrir um novo momento para o Supremo?
Mello - Toda renovação é importante. Permite, pelo acervo de contribuições que os ministros trazem, a modernização da visão dos problemas. Muitas vezes é preciso que o juiz tenha a percepção exata da realidade social que o cerca, que pode orientá-lo na formulação do ato decisório. Quer dizer, a renovação de qualquer tribunal é importante e, em especial, a renovação da corte suprema, e eu sinto que se isso efetivamente ocorrer... Não há nenhum juízo aqui sobre qualquer membro da corte, mas a mim me parece que chegou o momento de se abrir o tribunal e torná-lo acessível, por uma questão de direito, às mulheres.
Eu sei que há, mesmo internamente, reações contrárias, mas é chegado o momento. Nós temos juristas mulheres altamente qualificadas. Mulheres cuja atividade intelectual vem enriquecendo a literatura jurídica nacional. Prefiro não mencionar nomes, mas basta olhar na minha estante. Eu me pergunto: já não vem tarde uma nomeação para o Supremo? Eu acho que é um ato importante.

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