São Paulo, segunda-feira, 18 de novembro de 1996
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Maconha, aborto, união gay: armadilhas para lobos

FERNANDO GABEIRA
COLUNISTA DA FOLHA

Aos poucos, a maconha se introduz nas campanhas políticas, como esses fios de fumaça que saem pela fresta da janela, ou o cheiro de mato queimado que invade o corredor.
Nos Estados Unidos, ela apareceu em duas consultas populares, na Califórnia e no Arizona. Em ambos, a maioria dos eleitores aceitou sua utilização medicinal. A notícia circulou por aqui, devidamente envolta num pacote de referendos, em que se votou de tudo, até mesmo a legitimidade das armadilhas para lobos.
Maconha e armadilha para lobos numa outra configuração simbólica também fizeram sua entrada nas eleições municipais de 15 de novembro. No Brasil, ela deixou de ser a fumaça e o cheiro que, sorrateiramente, escapam pela janela. Não se tratava de seu uso medicinal, mas de seu uso como casca de banana.
A maconha se tornou a esperança de cura não de pacientes de glaucoma ou esclerose múltipla, mas de candidatos que estavam por baixo nas pesquisas no Rio e Belo Horizonte. E onde ela se revelava um fraco remédio, uma verdadeira palha, era ministrada com doses de descriminação do aborto e união civil de pessoas do mesmo sexo -um coquetel destinado a levantar qualquer paciente.
Os vitoriosos no Rio, São Paulo e BH conseguiram manter sua liderança, sem recuar, e isto é algo novo na história política do Brasil -o triângulo das três capitais governado por gente que apóia novas políticas, em outras palavras um uso humanitário do coquetel.
O mais patético dos debates foi em Minas. E, por várias razões, tinha mesmo de ser Minas. Os tucanos (vocês sabem, eles são o partido da modernidade) praticamente enlouqueceram. Acusaram Célio de Castro de ser um médico pró- aborto, de estimular o uso da droga, porque queria um tratamento no lugar de prisão para os usuários.
O argumento mais importante: ele não deveria tocar no assunto em programas de TV, vistos por gente com menos de 18 anos. Os tucanos queriam que não se falasse de sexo ou drogas com adolescentes.
Deve ser por isso que convidaram a princesa Diana para visitar BH. Só ela poderia garantir que os bebês são trazidos por cegonhas e as versões em contrário não passam de mentiras dos tablóides ingleses.
O coquetel não derrubou Pitta, Conde e Castro. Mas é uma ilusão pensar que houve grande avanços, como o da Califórnia. Lá, a maconha foi adotada como remédio. Aqui, ela fracassou. Os três prefeitos são inequivocamente austeros pais de família, que trataram o tema com uma calculada frieza cirúrgica.
Não se trata mais de prender o usuário, mas de dedicar a ele um tratamento médico. Não se trata mais de defender o aborto, mas sim de trabalhar pedagogicamente para que seja reduzido, salvando também as milhares de mães que morrem em operações clandestinas. Não se trata de estimular o homossexualismo, mas apenas reconhecer legalmente um contrato de duas pessoas.
Os tucanos vão negar que tenham representado o pólo retrógrado nas maiores cidades do Brasil. Podem até alegar circunstâncias locais. A mim não enganam. Importei sementes de cânhamo para uso produtivo, e eles responderam com a Polícia Federal. Tentei fazer experiências genéticas na Embrapa, eles responderam com o instituto de criminalística.
Goering dizia que ao ouvir a palavra cultura tinha vontade de sacar o seu revólver. Um observador mais crítico dirá apenas que, quando vê o doutor Fausto Henrique Cardoso e seus modernos tucanos, tem vontade de acender seu baseado.
Por incrível que pareça, o que muitas pessoas temem na maconha é essa capacidade de desnudar máscaras, de romper as caretas e revelar o que há realmente por trás da representação diante das câmeras.
Modestamente daria tudo para ver os súditos da princesa Diana em Minas se derramarem diante dos microfones, como o fez o candidato Amilcar Martins. Uma senhora ligou em pleno programa de rádio e perguntou se ele não tinha sido dono de um bar chamado Marijuana.
-Sim, minha senhora. Mas, por favor, não pronuncie errado. O nome era Maria Joana, com o, com o...
Minas, imensa, caótica, que saudades de suas montanhas. Se pudéssemos prensar os melhores momentos desses debates, todas as rezas, os sustos, quem sabe não lograríamos vendê-los nos cafés de Amsterdã?

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