São Paulo, domingo, 24 de novembro de 1996
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Santa Catarina importa o padrão da plutocracia alagoana

ELIO GASPARI

Está em curso um ataque aos cofres públicos. Trata-se de uma modalidade astuciosa. Mexe com coisas tão complicadas e instrumentos tão chatos que, para um cidadão que quer ganhar a vida em paz, o melhor a fazer é dedicar-lhe uma espécie de desinteresse condenatório.
Afinal de contas, que graça tem receber uma notícia ruim e ainda por cima ser obrigado a conhecer os mecanismos de lançamento dos títulos da dívida pública e a burocracia dos precatórios? (Precatório é aquele pedaço do inferno onde penam as almas daqueles a quem o governo não paga o que deve. Nele convivem indenizações monumentais e mixarias, proprietários de terras e viúvas de trabalhadores assassinados pela polícia.)
Adiante está a história da desgraça do lançamento dos títulos da dívida de Santa Catarina. Ela faz parte de uma epidemia de endividamento dos Estados. Talvez não seja a mais tenebrosa (em Alagoas falsificaram a assinatura do então governador, Fernando Collor de Mello). É a melhor documentada, graças à tenacidade de um cidadão indignado, o senador Vilson Kleinubing.
1988: O passado remoto
Durante os trabalhos da Constituinte se decidiu que os Estados seriam proibidos de lançar títulos da dívida pública. Deixou-se uma válvula de escape para o pagamento dos precatórios que tivessem transitado em julgado até o dia da promulgação da Carta, ou seja, outubro de 1988.
Fazia sentido, porque havia casos em que o peso desses compromissos seria insuportável. Para se endividar, o Estado deveria publicar no "Diário Oficial" a lista dos processos que seriam quitados. A essa época o secretário da Fazenda de Santa Catarina se chamava Paulo Afonso Vieira. Não listou dívidas nem sugeriu o lançamento de títulos.
1996: O papel misterioso
No dia 4 de julho passado, como governador de Santa Catarina, Paulo Afonso Vieira convocou ao seu gabinete as lideranças partidárias da Assembléia. Queria apoio para o seu projeto de lançamento de R$ 552 milhões em títulos do Estado.
A oposição o desafiava a demonstrar que havia R$ 552 milhões em velhos precatórios a pagar. Afinal de contas, meio bilhão de dólares é dinheiro em qualquer lugar do mundo. Em 22 anos, oito governos catarinenses acumularam uma dívida de R$ 760 milhões. Numa só canetada, ele queria aumentá-la em 72%. Não havendo precatórios a pagar, esse dinheiro acabaria custeando o Estado, imprimindo a Santa Catarina o estilo de gestão financeira da plutocracia alagoana.
Paulo Afonso passou um papel pela mesa da reunião. Era uma ordem de serviço, datada de 12 de dezembro de 1988, na qual, como secretário da Fazenda, tratara da questão dos precatórios. Esse documento, que nunca foi publicado no "Diário Oficial", tinha um despacho do então vice-governador (hoje senador), Casildo Maldaner.
Quando a ordem de serviço passou pelas mãos da deputada Ideli Salvatti, do PT, ela comentou com um colega que, naquela data, Maldaner não podia estar no exercício do governo. Ele só assumiu o governo em fevereiro de 1989, quando o governador Pedro Ivo Campos morreu. A deputada se recorda que Paulo Afonso ouviu seu comentário, recolheu o papel e guardou-o.
Passaram-se quase cinco meses, a oposição já perdeu a voz pedindo ao governador que mostre de novo o documento, mas ele sumiu. Paulo Afonso remeteu à Justiça uma xerox do que seria essa ordem de serviço, mas nela não há mais o despacho de Maldaner. Como caligrafia não migra, fica a questão: Maldaner poderia estar no exercício do governo no dia do despacho que sumiu?
Poderia. Os arquivos do "Diário Catarinense" informam que Pedro Ivo Campos se licenciou do cargo no dia 7 de dezembro de 1988. Entregou o governo a Maldaner e embarcou para São Paulo, onde foi tratar da doença degenerativa de que padecia. Voou em seguida para os Estados Unidos e no dia 12 de dezembro (data do papel misterioso) estava internado na Clinica Mayo.
Só o reaparecimento do papel misterioso poderá permitir um exame das assinaturas. Uma coisa é certa: Maldaner foi aconselhado por um colega a tiar o seu nome desse pedaço da história. O colega lhe disse que a insistência poderia vir a lhe custar o mandato.
(Para evitar mistério inútil: na última terça-feira, o presidente do Tribunal de Justiça, Napoleão Xavier do Amarante, informou ao Banco Central que os velhos precatórios não existem.)
Chegou a hora da viúva
No dia 11 de julho, a Assembléia catarinense autorizou a emissão dos títulos. O processo foi para Brasília, e o Banco Central informou ao Senado que o governo de Paulo Afonso Vieira estava na lista dos caloteiros da União. Não endossou a existência de vínculo entre a dívida e a necessidade de quitar velhos precatórios.
O Senado aprovou a emissão em regime de urgência, sem que ela fosse discutida na Comissão de Economia. (Nesse dia os dois senadores que mais lutavam contra a emissão estavam fora de Brasília. O senador Vilson Kleinubing convalescia de uma operação da câncer no pulmão e seu colega Esperidião Amin, licenciado, estava em campanha eleitoral.) Esquisito: Pernambuco e São Paulo emitiram R$ 1,2 bilhão sem regime de urgência. Já as prefeituras de Guarulhos e São Bernardo tiveram que passar pela Comissão.
Uma dívida de um Estado inadimplente, feita para pagar contas inexistentes, foi aprovada às pressas. Tudo bem. Nada melhor que um Congresso ágil.
Os papéis começaram a ser vendidos no dia 24 de outubro. Kleinubing tem consigo o rastro de cada transação. Poucas vezes uma operação financeira esteve tão transparente para quem quiser estudá-la. São algo como 50 folhas de papel. À primeira vista, é mais fácil ler a palma de uma mão. Com um pouco de paciência, a dança dos papéis adquire nexo.
Os R$ 552 milhões foram transformados em 552 mil títulos de R$ 1.000 cada um. Nos seis dias úteis que transcorreram de 24 a 31 de outubro, eles foram vendidos pelo Banco do Estado de Santa Catarina em quatro lotes.
O maior deles, com 250 mil títulos, foi passado adiante com a cotação de R$ 907. Uma semana depois, esses mesmos títulos eram vendidos a preços que oscilaram entre R$ 1.016 e R$ 1.059.
Isso é que é mão invisível. Vende por R$ 907 um papel que tem valor de face de R$ 1.000 e que, em questão de dias, vale R$ 1.059. Quem vendeu barato? A viúva, representada pelo banco do Estado. Quem comprou pelo preço mais caro? A viúva, representada pela Fundação Petros. Ela ficou com 16 mil títulos.
Interessante mercado esse. Em uma semana os títulos desse lote passaram por 76 operações. A Petros, a Telos (da Embratel) e a Fundação dos Economiários Federais só entraram na ciranda na hora de pagar caro. Num mercado em que é necessário que alguém perca para que outro ganhe, esse trio tenebroso entrou no papel de "paganini", perdendo quase R$ 9 milhões.
Os outros três lotes começaram a ser vendidos por preços melhores. O Banco do Estado conseguiu vender 52 mil títulos a R$ 1.020, mas todos os outros ficaram abaixo do valor de face.
Fica uma indagação. Por que as fundações não compraram os papéis ao Banco do Estado? (Não vale perguntar por que o banco do Estado não paga os precatórios com os próprios títulos, porque a graça da brincadeira está precisamente em fazer uma emissão para pagar precatórios sem que haja precatórios a pagar.)
Engenharia de vento
Aconteceram "otras cositas más" com esses papéis.
Eles foram transacionados 197 vezes, entre 28 empresas. De uma maneira geral, passaram de uma mão para outra com pequenas variações. Em sete transações, os papéis se valorizaram em mais de R$ 50 por título. Em quatro vezes, as valorizações foram superiores a R$ 100.
Pois nessa hora, quando a mão invisível resolveu mudar o preço de patamar, só houve cinco empresas no pedaço. Coisa assim: a corretora Ativação vendia 100 mil papéis para a IBF Factoring Fomento Comercial, a R$ 976 o título, e a Factoring o revendia à distribuidora Olimpia por R$ 1.059. O trio maravilhoso repetiu essa combinação de genética financeira em 4 das 7 vezes em que os papéis pipocaram. Sempre com a IBF comprando da Ativação e vendendo para a Olimpia.
No período documentado, a IBF ganhou R$ 25,4 milhões. Como foram seis os dias do período, embolsou um pouco mais de R4 4 milhões por dia.
Pode-se admitir que um banco estatal vá ao mercado vender barato e uma fundação chegue a ele para comprar caro, mas com empresas privadas isso é mais complicado. O tipo de combinação que envolveu as três empresas está ao desamparo das probabilidades matemáticas. A menos que tenham acontecido outras coincidências, o rei Midas está morando no Brasil, trabalhando para a IBF.
O perigo da epidemia
Tudo isso aconteceu debaixo das barbas do Banco Central. Está mais do que evidente que foi descoberta uma nova modalidade de endividamento dos Estados. Assim como os empreiteiros de outrora levavam planos de saneamento prontos para os palácios, dizendo aos governadores que cuidariam da liberação das verbas em Brasília, há agora escritórios de engenharia financeira que fazem o mesmo com papéis. Em Alagoas, um desses escritórios chegou a receber do governo a tarefa de redigir decretos.
As maracutaias da engenharia civil resultavam em obras superfaturadas, mas as obras apareciam. Há gente morando em conjuntos habitacionais e água correndo pelos sistemas de abastecimento. A engenharia financeira produz vento. Ou melhor, produz dívidas para quem vem atrás.
O governador Paulo Afonso Vieira, que não tem motivo para ser bobo, marcou o vencimento do ervanário para o mandato de seu sucessor. Por enquanto, a brincadeira custará ao infeliz toda a arrecadação tributária de um trimestre de trabalho da sociedade catarinense.

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