São Paulo, domingo, 24 de novembro de 1996
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O manifesto dos dinossauros

ROBERTO CAMPOS

"O ideal das estatais brasileiras é reformular a doutrina de Abraham Lincoln; não 'o governo do povo, pelo povo, para o povo' e sim dos funcionários, pelos funcionários, para os funcionários"
Do "Diário de um diplomata"
Minha viagem recente aos Estados Unidos coincidiu com o clímax da campanha eleitoral, na qual se elegeu o presidente Clinton. Campanha morna, em que apenas 48% dos eleitores compareceram às urnas. Bizarramente, segundo pesquisa de opinião, apenas 14% da população considerou o eleito um "honest citizen". Mas a economia vai bem e Clinton demonstrou habilidade ao se apropriar do essencial das teses da oposição -extinção do déficit fiscal até 2002, reforma da seguridade social, enxugamento do governo. Cautelarmente, os americanos querem um governo dividido: os republicanos continuarão controlando a Câmara e o Senado, evitando recaídas de Clinton na tradição dos democratas de taxação e gastança.
Ao voltar ao Brasil, encontro a situação piorada com a agravação do duplo déficit -o comercial e o fiscal-, sem perspectivas de alívio imediato. E um enorme retrocesso cultural revelado pelo manifesto contra a privatização da Vale do Rio Doce -o "Manifesto dos Dinossauros".
Ressuscita-se uma questão que parecia superada. A aceleração das privatizações é considerada pelos analistas econômicos nacionais e estrangeiros como a melhor, senão a única, forma de atenuar aquelas duas crises. Do lado fiscal, contribui para diminuir os déficits públicos. Do lado cambial, geraria confiança de que o país se tornaria solvente, pois que a venda de megativos não só reduz os megapassivos como atrai capitais permanentes.
Os signatários do manifesto "Reage, Vale", entre os quais se incluem dois ex-presidentes nunca acusados de erudição econômica, têm algumas características comuns: 1) desatualização em relação às novas filosofias do mundo pós-socialista, que pregam o retorno do governo às suas funções clássicas; 2) a subestimação da falência fiscal do governo; 3) ressaibos do velho clientelismo, que vê nas estatais um instrumento de poder político regional; 4) nacionalismo arcaico.
Construiu-se toda uma mitologia em torno da CVRD, que é preciso desmistificar:
. A empresa é a menos ruim de nossas estatais, mas é medíocre no contexto internacional. Escapou da ineficiência por lhe ter sido negado em 1966 o monopólio mineral que pleiteava (sob o pretexto de combater a Hanna Mining Co.). Obrigada a competir internacionalmente, preservou modesta rentabilidade. Modesta, porque é a menos rentável (e a de menor cotação no mercado internacional) no elenco das grandes mineradoras, que inclui a Rio Tinto Zinc (inglesa) e as duas australianas -Broken Hill Properties e CRA Limited. Vejam-se os dados abaixo:

A principal razão da baixa rentabilidade da CVRD (entre um terço e um sexto da rentabilidade das congêneres) é precisamente seu caráter estatal, que destrói a agilidade de reações e a flexibilidade exigida na luta concorrencial.
. A CVRD não escapa ao defeito comum das estatais brasileiras. Trabalha mais para os seus 17 mil funcionários que para a massa dos milhões de brasileiros representados pelo Tesouro. As doações ao fundo de pensão Valia (que é patrimônio privado dos funcionários) excedem os dividendos pagos ao Tesouro, principal acionista:

. Para um Tesouro falido, a CVRD é péssima aplicação financeira. Até 1986, a média anual de dividendos era 0,5%, subindo para 2% anuais nos últimos sete anos. Por contraste, a rolagem da dívida do governo para manter a administração central e a horda de estatais custa uma taxa real de 13% ao ano (24% nominais). A única solução racional para o Tesouro é a venda dos ativos da CVRD, para realização do considerável valor patrimonial acumulado. Em outras palavras, a privatização. Os políticos se esquecem de que o governo, ao privatizar, retém seus privilégios de "gigolô". Quando um particular vende uma propriedade, recebe o valor patrimonial, mas perde o fluxo de receita. Quando o governo privatiza, abiscoita o valor da venda e continua percebendo fluxos de receita como sócio oculto, através do Imposto de Renda... No caso brasileiro, a receita corrente do Tesouro aumentará com as privatizações, pois não auferia dividendos significativos e passará a receber maior receita de impostos pelo fim das isenções e da inadimplência. (A Cosipa privatizada pagou no ano passado impostos equivalentes à soma de dez anos da gestão estatal).
Não há assim razão econômica para não se privatizar a CVRD. Restam bobagens encapsuladas sob o rótulo "estratégico", palavra no Brasil mais esgarçada que hímen de prostituta. É ridículo pensar que ter jazidas ou produção de minério de ferro, caolim, ouro e bauxita seja requisito estratégico. Se assim fosse, a Venezuela seria grande potência, e a Alemanha e o Japão, republiquetas indefesas. O poder estratégico depende do estoque global de conhecimentos, da eficiência das empresas e de reservas cambiais para segurança do abastecimento.
Subjacente ao texto do "Manifesto dos Dinossauros", jaz a velha e primitiva confusão entre "recurso" e "riqueza". As jazidas de ferro e ouro da CVRD (assim como as jazidas da Petrossauro) são cadáveres geológicos, que poderão ou não tornar-se úteis, dependendo de capitais, tecnologias e mercados. Imaginar que recursos naturais sejam riquezas é tão inteligente como equiparar um DNA de Beethoven a uma sinfonia!
O argumento regional é outra cisma fútil. A CVRD privatizada não desertará dos lugares onde opera. Estes tenderão até a expandir-se na medida em que a privatização aumente a eficiência e atraia novos investidores. As prioridades do desenvolvimento devem ser decididas pelo orçamento votado pelo Congresso e não por tecnocratas regionais. A CVRD já cumpriu sua função pioneira. Aliviados os encargos da dívida pública, baixarão as taxas de juros, e o setor privado será o motor do desenvolvimento, concentrando-se o governo em suas funções sociais.
Resta, finalmente, o argumento romântico. A CVRD foi um "legado de Getúlio", em virtude dos acordos de Washington na Segunda Guerra. Ora bolas! Também o era a CSN, que foi privatizada por Itamar Franco num momento de rara lucidez...
A privatização da CVRD é um teste da firmeza e determinação do governo na modernização do Estado. Se fraquejar, aumentará a suspeita internacional de que não nos damos conta da gravidade dos problemas fiscal e cambial e do risco de insolvência. O manifesto "Reage, Vale" é um soluço agônico do pensamento arcaico!

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