São Paulo, domingo, 24 de novembro de 1996
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Crise anunciada, solução engavetada

LUIZ GONZAGA BERTELLI

É uma pena que, entre tantas mudanças em andamento, o Brasil não tenha resolvido abandonar o vício de manter boas soluções na gaveta e, em seu lugar, adotar o saudável hábito de transformar em realidade estudos que possibilitem melhor aproveitamento de nossas potencialidades, atenuando problemas previsíveis antes que a situação atinja o ponto crítico.
A crise anunciada do sistema elétrico brasileiro é um ótimo, embora lamentável, exemplo das consequências desse resistente vício. Há mais de uma década vozes respeitáveis alertam para o risco de desabastecimento e consequente racionamento de energia elétrica, como resultado do corte de investimentos no setor de geração. E mais: recomendam, com ênfase crescente, a busca de fontes alternativas para suprir o inevitável déficit.
O governo Collor criou, em 1991, a Comissão para Reexame da Matriz Energética (CRME). A CRME estimava que a co-geração, com bagaço, pontas e palha da cana, seria capaz de atender a 12% do acréscimo de eletricidade previsto para o final deste século e início do próximo. Os cálculos para chegar a esse número são simples.
1º - Uma tonelada de bagaço produz 1.800 quilocalorias, e de palhiço, 2.900;
2º - A co-geração é uma alternativa viável, técnica e economicamente. Com efeito, todas as 127 usinas/destilarias do Estado de São Paulo já são auto-suficientes em geração de energia, advinda da queima do bagaço da cana, registrando-se excedentes;
3º - A capacidade de oferta de energia adicional do setor alcooleiro está estimada em 6.000 mW, ou seja, cerca de 10% da potência instalada no país (56 mil MW, ou 63 mil, se considerarmos a parte paraguaia de Itaipu).
Ainda em 1991, o Banco Mundial estimou em US$ 67 por mWh o custo marginal de expansão da geração do sistema hidroelétrico interligado nas regiões Sul-Sudeste, enquanto os produtores de açúcar e álcool fixavam em torno de US$ 50 por mWh o custo da co-geração com resíduos de cana.
Com tantas indicações favoráveis, nada mais natural do que viabilizar o programa de co-geração. Contudo, muito pouco foi feito nos últimos cinco anos. Talvez o único avanço tenha ocorrido em relação aos produtores independentes de energia, que assinaram um protocolo com o governo do Estado de São Paulo.
Esse documento, entretanto, rendeu poucos frutos como, aliás, foi previsto na época. O contrato-padrão, definido no protocolo, é limitativo e desestimula o investimento privado, pois a definição da tarifa a ser paga ao co-gerador fica circunscrita aos cálculos do Departamento Nacional de Águas e Energia Elétrica (Dnaee) sobre o custo marginal da geração.
Atualmente, a perspectiva de insuficiência da capacidade instalada de geração elétrica e o risco de racionamento do fornecimento em horários de pico colocam-se em patamares nunca antes verificados. O aumento da geração nas fontes convencionais (usinas hidroelétricas e térmicas, a óleo combustível ou gás) exigirá investimentos consideráveis, da ordem de US$ 6,4 bilhões no período 1996-2000, e também um longo prazo (que talvez o Brasil não possa esperar) para início de operação. Isso sem falar nas crescentes exigências dos ambientalistas, que têm retardado a construção de hidroelétricas no país.
O que torna o tema ainda mais frustrante é que a geração de eletricidade com resíduos de cana poderia estar sendo feita durante a safra, ou seja, no período da seca, que coincide com os meses críticos de geração hidroelétrica. Com efeito, a co-geração pode, na prática, elevar a capacidade de geração de energia de base, sem investimentos em novas hidroelétricas. Porém, embora viável e desejável do ponto de vista nacional, apenas dez usinas em São Paulo e um número ainda não determinado no Norte-Nordeste continuam insistindo na co-geração.
Sem dúvida, a questão tarifária é um dos grandes fatores de desestímulo à co-geração. Quase todas as unidades industriais sucroalcooleiras de São Paulo continuam recebendo tarifas entre US$ 19 e US$ 22 por mWh, a partir de resíduos da cana. Outra comparação, difícil de entender, revela que as concessionárias de distribuição compram a energia de Itaipu por US$ 32 por mWh (em média), mas alegam poder pagar apenas US$ 19 a US$ 22 para os co-geradores, que garantem a entrega de energia no momento mais crítico do ano.
O setor sucroalcooleiro espera que a necessidade de energia reacenda o interesse pela co-geração. Os números estão aí, funcionando como um sinal vermelho de alerta. O déficit de potência instalada pode chegar a 2.000 mW no próximo biênio.
O consumo de energia registra crescimentos de 8% em 1995 e de 6% de janeiro a setembro deste ano, devendo se acelerar com a possível retomada do desenvolvimento econômico. Nessa progressão, para evitar a crise o Brasil precisa adicionar 5.000 mW na capacidade de geração até 1998, chegando aos 60 mil mW. Em 2000, temos a necessidade de gerar 80 mil mW, subindo para 97 mil em 2005. Uma tarefa nada fácil, pois há dez anos não se realizam investimentos consideráveis no setor.

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