São Paulo, domingo, 24 de novembro de 1996
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As sinuosidades da língua

Dicionário esmiúça terminologia alemã de Freud

LUIZ R. MONZANI
ESPECIAL PARA A FOLHA

O "Dicionário Comentado do Alemão de Freud" de Luiz Hanns constitui uma oportuna publicação da Editora Imago. Realizado com cuidado e competência, a obra procura atingir, basicamente, o público não familiarizado com a língua alemã e que se interessa pela obra de Freud. Trata-se, de fato, de um trabalho indispensável para esse público.
O autor selecionou 40 termos básicos de terminologia freudiana e procura apresentá-los por meio do que denomina cinco módulos: 1º) composição da palavra: significado coloquial do termo, ilustrado por meio de exemplos e as conotações que tem o termo no universo linguístico germânico; 2º) etimologia da palavra; 3º) o termo ou expressão é comparado com o termo consagrado, em tradução, no português, por exemplo, "Reiz"/ estímulo; os diversos significados dos termos são comparados e contrastados numa tabela, na qual se podem visualizar as diferenças e semelhanças com o português; 4º) neste módulo ele apresenta (por meio de frases e parágrafos de diferentes obras de Freud) exemplos nos quais a palavra aparece, permitindo ao leitor perceber sua inserção no contexto e, por fim, 5º módulo, no qual o termo é analisado "à luz de aspectos linguísticos e teórico-psicanalíticos".
O que torna particularmente interessante o trabalho de Luiz Hanns é o fato de que ele escapa, até onde isso é possível, do caráter um pouco, digamos, "esquelético" ou "engessado" dos dicionários tradicionais que, em geral, optam por uma determinada tradução e a mantêm rigidamente. Já o texto do autor, por meio do método que usa, faz o leitor, de uma certa maneira, imergir paulatinamente no rico e emaranhado rizoma das significações, acompanhando suas denotações, conotações e origens; suas equivalências e diferenças com qualquer (em geral) termo escolhido em português. Uma coisa que especialmente chama a atenção do leitor é que, frequentemente, a polissemia do termo em português, muito maior que a do termo alemão, pode nos levar a mal-entendidos.
Deixemos essas generalidades e tomemos alguns exemplos. Em primeiro lugar, selecionemos o verbete que corresponde em alemão ao termo "Trieb". Luiz Hanns realiza um estudo extremamente minucioso e elucidativo do termo e, ainda por cima, sintetiza para o leitor, num belo quadro, os sentidos do termo, sentidos esses que Freud nunca deixou de utilizar quando sentiu necessidade. Mas é no comentário (módulo cinco) que temos uma análise interessantíssima e muito esclarecedora. Dentro dos limites dessa resenha seria impossível para mim resumir o já altamente sintético texto do autor.
Mas, seguramente, ele sairá enriquecido depois de ler essas páginas. Outra coisa digna de nota: o termo "Trieb" tinha, tradicionalmente, sido traduzido por instinto. Mais recentemente, começou-se a dar preferência ao termo pulsão. Pessoalmente prefiro o último termo, mas sempre tive consciência de que, se ele é melhor que o primeiro, nem por isso resolve todos os problemas. Isso fica particularmente nítido no exame realizado pelo autor, e é isso, entre outras coisas, que torna rico seu trabalho.
Tomemos um outro exemplo, agora com relação ao termo alemão "Vorstellung", que se traduz frequentemente por "representação" ou "idéia". Para deixar mais claro o que queremos dizer, olhemos para o mesmo verbete no já clássico e competente "Vocabulário da Psicanálise" de Laplanche e Pontalis. Este último opta pelo termo "representação" e desenvolve todas suas considerações nessa linha. Já o tratamento dado por Hanns mostra-nos a polissemia do termo, em alemão e português, que não se superpõe integralmente. Veja-se, por exemplo, o quadro da pág. 390.
Duas coisas são dignas de nota: o termo "representação" em português tem um campo semântico mais largo que o termo "Vorstellung" em alemão, sendo que os sentidos principais não se recobrem. Em compensação, no campo da conotação, acontece o inverso, o que acaba gerando, às vezes, problemas de difícil solução; segundo, é digno de nota o trabalho que o autor faz no módulo cinco desse verbete, comparando e contrastando com termos afins e de uso em Freud, fazendo com que o leitor atinja um grau de compreensão bem maior que o usual.
A única coisa que me decepcionou um pouco na obra, nesse primeiro exame, confesso, foi o seu título: "Dicionário Comentado do Alemão de Freud" porque, quando se fala na língua de um autor (o português de Machado, o francês de Maupassant), isso parece reenviar mais a questões de estilo, do que propriamente para o uso de certos termos. Não que tenha alguma sugestão substitutiva. A única que me vem a cabeça empobreceria o alcance do trabalho, embora talvez fosse mais representativa: "Vocabulário de Freud". Certamente o autor pensou nisso e, se descartou essa hipótese, teve seus motivos.
Comecei dizendo que o trabalho do autor é meritório e muito oportuno. Reafirmo isso ao reproduzir o que me passou pela cabeça depois de examiná-lo: será que ele nos presenteará com um volume dois, com mais um grupo bem escolhido de termos?

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