São Paulo, domingo, 24 de novembro de 1996
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O sexo contemporâneo entre o tédio e o êxtase

CONTARDO CALLIGARIS
ESPECIAL PARA A FOLHA, DE BERKELEY

No Teatro Artaud de San Francisco, em setembro, assisti a uma peça chamada "Teatro da Crueldade". Eram trechos de Artaud montados habilmente em um espetáculo que -seguindo, aliás, as próprias idéias teatrais de Artaud- queria sobretudo pegar o espectador pelas tripas. Depois do espetáculo, fui reler "O Teatro e Seu Duplo", de Artaud. Lembrava-me deste texto, lido 30 anos atrás, como uma extraordinária provocação. Artaud preconiza um teatro que se enderece ao corpo, possa produzir transes, golpeie o senso comum pelo extraordinário. Em suma, alguma coisa que -como ele escreve- nos tire do "aborrecimento, da inércia e da estupidez de todas as coisas".
E o espetáculo de San Francisco tentou. Pateticamente. As luzes estroboscópicas, que deviam surpreender pela fragmentação dos movimentos dos corpos, são mil vezes melhores nas boates disco. Aliás, já eram, pois sumiram destas por terem-se tornado banais.
As citações de Artaud -que, tecendo um elogio da loucura, animavam a antipsiquiatria dos anos 60- chegavam a parecer ridículas. Os "loucos" saem dos hospícios, circulam em grande número pelas ruas norte-americanas e -surpresa- eles não têm, na verdade, nada de muito interessante ou revolucionário para dizer. Os gritos e barulhos insensatos estavam decididamente aquém do barulho médio de um grupo heavy metal. Os mortos e feridos pareciam baunilha comparados com as fossas comuns da Bósnia cada dia na tela da televisão.
Em breve: como provocar uma platéia hoje? Mais interessante ainda: por que querer provocá-la?
Em 95 saíram, nos Estados Unidos, três livros significativos no campo dos "Gay Studies", "Homos", de Leo Bersani (Harvard University Press); "Saint-Foucault", de David Halperin (Oxford University Press) e "Bringing Out Roland Barthes", de David Miller (University of California Press). Podem ser lidos juntos. Nos três existe um clima geral que remete à mesma questão da peça de San Francisco. Por economia, ficamos com os dois primeiros.
Bersani parte de uma questão de atualidade: será que a constituição de uma "identidade homossexual" é -digamos assim- uma forma de oposição ao sistema dominante de poder, ou então, ao contrário, uma forma sutil de obediência? Depois de um percurso interessante, ele chega aparentemente à conclusão que, hoje, a constituição e manutenção de uma "identidade homossexual" é subversiva. Certo, a própria "homossexualidade" foi uma construção do poder (no sentido impessoal que este termo tem em Foucault). Certo, nos últimos anos, a posição inovadora pareceria mais coincidir com a idéia de uma sexualidade polimorfa, não fácil de se catalogar (exemplos: o movimento "queer", a dita "subversão" da distinção de gênero pelos ou pelas drag-queens etc.).
Mas, apesar de tudo isso, Bersani acha que a "identidade homossexual" acarreta um potencial subversivo inexplorado. Sua explicação é a seguinte: vivemos em uma época que justamente valoriza cada vez mais as diferenças. Diferenciar parece ser uma estratégia fundamental do poder (no sentido já citado). Por consequência, uma identidade construída ao redor do amor do mesmo (e não do diferente) poderia ser uma tática de resistência, a introdução de um elemento radicalmente novo.
Halperin oferece, em seu livro, dois ensaios sobre Michel Foucault. O primeiro sobre o uso político de Foucault e o segundo -ótimo, na verdade- de crítica à recente biografia de Michel Foucault por James Miller. Ora, em vários momentos, ele encontra um jeito para defender a idéia que a prática do "fist-fucking" (coito anal operado com o braço inteiro) contém um claro "potencial criativo e transformativo". Esta preferência sexual lhe parece prometer a descoberta de uma dimensão de prazeres do corpo que não seriam propriamente sexuais, por não serem genitais. Se espera então do "fist-fucking" a "redefinição tanto da significação quanto da prática do sexo", e isso para produzir uma "descentralização e regionalização de todos os prazeres" (págs. 90 e 91).
Não me interessa aqui discutir nem a tese de Bersani, nem a de Halperin. Até porque não saberia o que dizer: a relação entre uma preferência sexual como o "fist-fucking" ou mesmo uma orientação sexual homoerótica e, por outro lado, os destinos globais de nossa civilização é bastante opaca para mim.
Mas me interroga a constatação (que vale também para o livro de David Miller, que deixei de lado) da persistente necessidade de dar a uma preferência ou orientação sexual um valor revolucionário. É algo bem além da reivindicação do direito de poder ser e viver como a gente quer. Trata-se da convicção bem alimentada de ser uma exceção. E, por isso, de carregar consigo a semente de uma mudança radical.
A histeria constitutiva
Como os atores do "Teatro da Crueldade"' e provavelmente como o próprio Artaud, nos consideramos únicos. Esta não é uma contingência psicológica banal, mas a histeria constitutiva de nossa cultura, nossa interminável adolescência. Também vivemos facilmente nossa pretensa unicidade como um desafio ao mundo, a todos os outros que, segundo as épocas e as ocasiões, chamamos de filistinos pequeno-burqueses, reacionários, acomodados, funcionários da normalidade, sexualidade baunilha etc.
Como se, para alimentar a certeza de nossa unicidade, fosse necessário supor que, ao redor de nós, se estende uma massa amorfa e indistinta. Para que, nesta vala lastimável e bovina, nossa excepcional unicidade possa ser reconhecida, nascem vocações proféticas, missionárias ou escandalosas.
O sujeito contemporâneo nem sempre sabe o que fazer para ser diferente, mas, de qualquer forma, parece conceber facilmente sua pretensa diferença como uma promessa de salvação. É uma maneira, aliás, de continuar convencido da unicidade de seu destino.

E-mail ccalligari@aol.com

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