São Paulo, domingo, 24 de novembro de 1996
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Os parnasianos alternativos

GUSTAVO H. B. FRANCO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Há duas maneiras de olhar o texto da professora Leda Paulani ("A 'franqueza' da social democracia", Mais! de 27/10/96): a primeira, mais convencional, tendo que ver com a substância de suas críticas ao "caráter despudoradamente ideológico" do meu texto (1). A segunda, muito mais interessante, tem que ver com a forma: o artigo da professora está repleto de um ódio retumbante, avassalador, um ódio que goteja de cada um dos seus superlativos, e que convida, pelo fascínio que desperta, a uma especulação sobre suas origens. Não tenho dúvida que, diante da superficialidade do tratamento dispensado pela professora aos temas de substância, a questão realmente palpitante é uma só: por que a professora está tão zangada?
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Para começar, um par de esclarecimentos sobre o que eu realmente disse, o que, como é comum nesses casos, tem apenas um parentesco longínquo com as teses que a professora me impinge. Meu texto discute as razões para o esgotamento do chamado modelo de crescimento por substituição de importações nos anos 1980, explorando não tanto o caminho habitual de tantos analistas -a exaustão fiscal-, mas a perda de dinamismo tecnológico (ou a progressiva estagnação da taxa de crescimento da produtividade) que teria se seguido das dosagens cada vez maiores de concentração industrial, regulação defensiva e proteção tarifária. As consequências desse processo no terreno distributivo, e com respeito à competitividade, teriam sido as piores possíveis, e o processo de abertura, à medida que produz uma aceleração da taxa de crescimento de produtividade, ensejaria um processo de crescimento com melhorias tanto na distribuição de renda quanto na competitividade.
Eu não vejo nada de muito ideológico, ou mesmo controverso, nessas teses. Houve quem dissesse que Furtado já tinha descoberto tudo isso há muitos anos, mas, mesmo assim, a professora demonstra uma monumental irritação com essas idéias, e seu artigo está cheio de passagens -beirando a falta de educação- que o demonstram amplamente. Francamente (e sem mais trocadilhos), eu tenho a impressão que o Brasil não ganha nada quando os talentos da esquerda assumem que qualquer desvio dos ideais históricos nacionalistas e intervencionistas, dos quais, não se sabe bem por que, os partidos de oposição e os economistas "alternativos" hoje se julgam herdeiros exclusivos, é considerado crime de neoliberalismo explícito e punível com manifestações de falta de educação. É, todavia, com esse espírito nada elevado que a professora lança o que, a seus olhos, parece ser a pior das denúncias: "O travestimento do credo liberal" (sic), quando nem sequer como insulto esse tolo arremedo de patrulhamento se sustenta. Chamar alguém de neoliberal, nos dias de hoje, especialmente quando parte de alguém como a professora, é como antigamente era chamar os outros de "burguês".
Segue-se, não obstante da fúria inquisitorial da professora, et pour cause, uma acusação ainda mais grave: a de que "desprez(o) olimpicamente condicionantes históricos e sociais decisivos de todos os processos" (sic) de que trato. Convenhamos, isso é de uma presunção sem tamanho. Não há dúvida que se trata do tratamento normalmente dedicado aos que não demonstram reverência ao materialismo dialético ou que não comungam de macrocosmologias fantasmagóricas como, por exemplo, a do portentoso artigo de J. C. Souza Braga ("O espectro que ronda o capitalismo", Mais!, 01/09/96), ou das percepções "sombrias e desalentadoras", conforme a descrição da própria professora (2), do dr. François Chesnais, um dos mais badalados diretores novos desse não tão novo gênero "capitalismo catástrofe".
Deve ser reconhecida como absolutamente natural a existência de "visões alternativas" sobre a economia, assim como em qualquer área do conhecimento humano. Também é normal que os economistas "alternativos", qualquer que seja sua seita, se julguem os únicos detentores das chaves mágicas para a compreensão da história e entendam que a humanidade estará perdida caso persista em ignorá-los e às suas recomendações. Estava tudo escrito nos "Grundrisse", ou em Nostradamus, eles dirão, mas até aí, tudo normal. Exótico mesmo é quando o "alternativo" ataca o "mainstream", procurando tomar-lhe o lugar, o que representa uma real impossibilidade, pois o "alternativo" apenas existe nessa condição. Um astrólogo jamais será ministro do Planejamento, pelo menos num governo sério. Por isso mesmo a revolta dos professores em tudo se parece a uma sublevação de homeopatas, ou de adeptos da cirurgia mediúnica, ou dos florais de Bach, que se põem a atacar vigorosamente a medicina convencional, neoliberal e corrompida pela sociedade de consumo. É meio ridículo, mas nesses tempos politicamente corretos, deve haver condescendência para com esses excessos. Além do que, como os professores bem sabem que as pessoas apenas dão atenção a curandeiros quando a medicina tradicional já esgotou suas possibilidades de cura, repetem-se em desenganar a humanidade com assustadores vaticínios de uma catástrofe iminente. O cruel é que à medida que o Brasil vai deixando para trás a hiperinflação, as moratórias, os calotes e congelamentos, os "alternativos" que conceberam essas criaturas vão sendo relegados ao submundo das idéias, num espaço tão inofensivo quanto o dos horóscopos de jornal.
A perplexidade ou esse misto de fascínio com insegurança, com a globalização, abre enormes espaços para essas esquisitices: "O Brasil está próximo da modernidade e também da sedução mística", lembra Roberto Da Matta (3). O fato de não haver mais sentido em falar de transformações apocalípticas do tipo marxista-leninista, nem tampouco no Sentido da História e suas inescapáveis determinações, como se falava antigamente, resultou em que a intelectualidade militante de onde saem os professores perdeu completamente o senso de direção. A confusão foi apenas reforçada pelo fim da Guerra Fria, ou o desarme da Perspectiva Final colocada pelo conflito nuclear. E mais ainda pela perda de alguns referenciais revolucionários latino-americanos, a saber, a crescente decrepitude do regime cubano e a degeneração do sandinismo, por exemplo. Não há, portanto, nem uma Direção nem um Fim, apenas um vazio. "Este é o verdadeiro fim da história, o fim da razão histórica", como diz Baudrillard (4). "O problema", ele continua, "se torna um relativo a resíduos. Não apenas de substâncias materiais, incluindo lixo nuclear... mas também de ideologias defuntas, utopias esquecidas, conceitos mortos e idéias fossilizadas que continuam a poluir nosso espaço mental".
É neste caldo de cultura da aproximação do milênio que se entende a proliferação de misticismos econômicos envolvendo interpretações exóticas para o processo de globalização. Esta pode ser, por exemplo, "a culminância e o paroxismo do fetiche da mercadoria plena que é o capital" (Souza Braga) ou, no outro extremo -lembrando que para cada ufólogo existe sempre um cético, antiufólogo, tão tolo quanto o primeiro, querendo a todo custo desmascará-lo-, a globalização seria "uma gigantesca empulhação" (5).
No quadro das cosmologias esotérico-dialéticas-delirantes da globalização destaca-se o espectro da catástrofe financeira decorrente dessa misteriosa "financeirização da riqueza", uma situação de "uma economia fetichizada em que a circulação monetário-financeira ampliada em vertiginosa espiral guarda tênue correspondência com os fundamentos..." (Souza Braga). Ou em que, como diz o mais novo especialista em "global bonds", iluminado pelos "Grundrisse", "o estoque de capital produtivo é excedente e este 'excesso' aparece sob a forma de uma pletora de capital monetário, diante de perspectivas pouco animadoras de acrescentar o seu valor como capital em função" (6).
Impossível saber o que são essas coisas, mas nada pode soar mais assustador: fetichismo, financeirização, capital em função, cruz credo. Com efeito, a professora fala sobre a "atual etapa do sistema capitalista" ("a destruição do Estado do bem-estar social, colapso das regulações nacionais, financeirização da riqueza, um imenso processo de concentração e centralização dos capitais, desemprego e exclusão crescendo a olhos vistos") com verdadeiro nojo, como se estivesse segurando um rato com as mãos.
A terminologia dos professores é verdadeiramente parnasiana ou, talvez, simbolista. Oh, meu Deus, esses incríveis economistas da Unicamp (Universidade de Campinas) recitando, arrebatadores, críticas ao Plano Real que soam como versos de Augusto dos Anjos ("Vês! Ninguém assistiu ao formidável/ Enterro de tua última quimera/ Somente a Ingratidão -essa pantera/ Foi tua companheira inseparável") ou de Cruz e Sousa ("Ó meu ódio, meu ódio majestoso/ Meu ódio puro e benfazejo/ Unge-me a fronte com teu grande beijo/ Torna-me humilde e torna-me orgulhoso") (7). Misturam-se escarros, quimeras, ódios imorredouros e essa fantástica financeirização fetichista. O efeito plástico é soberbo. Vale, para essa turma, a observação de Olavo Bilac, na biografia de Augusto dos Anjos, a propósito de jovens poetas que "falam apenas sobre mundos degradados, de modo que a literatura se tornou uma enfermaria onde se acolhem os doentes e se observam as moléstias, uma orgia de pessimismos, moafa de satanismos, um destempero de blasfêmias" (8).
Para essa gente não há um pingo de dúvida: o fim do mundo é uma religião, um Destino inelutável para uma economia em pecado, agora como decorrência dessa financeirização-fetichização e seu maldito fio condutor, o neoliberalismo. Está escrito nos "Grundrisse". As guerrilhas alternativas se armam para combater esse demônio, mas como bem colocou o companheiro subcomandante Marcos (segundo consta, em entrevista a Régis Debray, cena inesquecível), não se tem a mínima idéia de como deve ser a Nova Era após a vitória da Revolução Zapatista no México. O que é isso, companheiro? À luz dessa espantosa declaração, e para qualquer um que conheça a explicação junguiana para os discos voadores, fica clara a semelhança entre o Encontro Internacional da Humanidade contra o Neoliberalismo, recentemente promovido pelos zapatistas, e um grande congresso de ufologia. Não deve haver dúvida, no próximo congresso esses zangados professores devem ser enviados como delegados brasileiros para explicar essa coisa de financeirização com fetichismo e, quem sabe, também, a aparição do ET de Varginha.
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O ódio simbolista-parnasiano da professora pareceria bem mais justificável, ao fim das contas, se o capitalismo em geral e o Brasil em particular estivessem muito mal das pernas, com a miséria de fato se alastrando "a olhos vistos", como alega a professora. Só que não é nada disso. Pelo contrário, o Brasil do Real registra progressos nos indicadores econômicos e sociais que não se observam há muitos anos, e talvez esteja justamente aí a explicação para a espantosa zanga da professora: as coisas estão funcionando! Melhorou a distribuição de renda, caiu a mortalidade infantil, a inflação caiu a um dígito, os salários reais cresceram, o desemprego está na mesma, reduziram-se as desigualdades regionais, tudo isso em dois anos. Por que, em nome de Deus, isso haveria de ser tão irritante?
Talvez a explicação esteja em uma difícil acomodação a ser empreendida pelo imaginário da intelectualidade militante. Uma vez sepultadas as veleidades revolucionárias, os movimentos sociais passam a orbitar em torno de desígnios mais modestos, associados à simples melhoria das condições de vida. Resolver problemas práticos do cotidiano parece muito mais importante do que se meter a reformar o universo. Isso parece inevitável, tendo em vista o monumental fracasso econômico do socialismo real e o fato de as ditaduras do proletariado terem se mostrado tão vigaristas e sanguinárias quanto todas as outras. E pior ainda: onde quer que funcionaram regimes populares de esquerda, foi porque seguiram receituários opostos aos da sua prática anterior. Veja o peronismo, por exemplo. São duras realidades. E é justamente aí que está a chave do problema: se o real, com letras minúsculas, se torna uma referência perturbadora para a intelectualidade militante brasileira, que dizer do Real, com letras maiúsculas, projeto político vencedor, que traz em sua própria denominação estampados os termos do problema, o signo do que realmente importa?
Acho que temos aí uma boa pista para entender a incrível zanga da professora, que aliás, não é apenas dela: é também de alguns comentaristas econômicos de porta de cadeia, como esse extraordinário Aloysio Biondi. Não há dúvida, no Brasil remanesce uma enorme demanda pela catástrofe. É enjoada a monotonia da estabilidade. Não há profetas sem cataclismas, epidemias, desgraças. O que será do Gil Pace? Como é triste esse desemprego tecnológico dos arautos do caos. Mas nem tudo está perdido. A balança comercial e a crise cambial ainda poderia redimi-los. A torcida é grande: o fracasso retumbante do Real, o real subvertido pela fantasia "alternativa", o Brasil virar México, o sertão virar mar, o Conselheiro estaria certo, e também o conselheiro com letra minúscula, conselheiro econômico agourento, meio engraçadinho, sem educação, como alguns que têm por aí.
Em suma, o Brasil mudou e a insistente referência ao mundo real e ao Real parece profundamente irritante para os professores parnasianos. Meu texto, em particular, atrai para si esse ódio em função de um atributo bem identificado por um renomado consultor econômico, lá do alto da Torre de Marfim: "Não passa de um policy paper", ele disse. É isso mesmo, professor. Um "policy paper". Um texto prático sobre problemas do mundo real e com base em sabedoria acadêmica acumulada em estudos empíricos. O texto tem um bocado de pimenta (talvez seja isso o que o vocabulário da professora designe como ideológico), o que, todavia, não o faz menos sólido do ponto de vista técnico, nem menos concreto nas propostas que faz.
Os caminhos do Brasil não serão descobertos em Feuerbach ou Stuart Mill, ou nos "Grundrisse", mas em respostas muito objetivas a questões práticas que poluem o nosso dia-a-dia. Como a professora explica o declínio da taxa de crescimento da produtividade no Brasil? Não estaria esse fenômeno associado a características perversas da organização industrial criada pela substituição de importações? Isso não explicaria, ao menos em parte, a nossa terrível distribuição da renda? A abertura não seria útil para resolver este problema? E, para além dessa questão mais específica, o que dizer sobre reforma do Estado, equilíbrio fiscal, privatização? O que a professora teria como alternativa, por exemplo, para a privatização da RFFSA? O que faria com os bancos estaduais? Teria deixado haver uma crise bancária ou teria feito algo como o Proer? E, se fosse para fazer diferente, como seria um Proer de esquerda?
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Irônico mesmo é que esse governo que os zangados professores insistem em chamar de neoliberal, ou de fazer o jogo do FMI, fez mais pelo social, pelo crescimento e pela distribuição mais justa (inclusive regionalmente) da riqueza, do que todos esses professores parnasianos alternativos metidos a donos da consciência crítica nacional seriam capazes de sequer sonhar. Isso deve ser mesmo muito doloroso.

NOTAS: 1. Ela se refere a meu texto "Inserção Externa e Desenvolvimento", que tem circulado sob a forma de cópias xerografadas e tem tido alguma repercussão.
2. Segundo resenha, da própria professora, do livro de Chesnais "A Mundialização do Capital", em "Jornal de Resenhas", Folha, 08/11/96.
3. Em Juremir Machado da Silva (ed.), "O Pensamento do Fim do Século", Porto Alegre, L&PM, pág. 161.
4. Jean Baudrillard: "The Illusion of the End", Stanford University Press, pág. 22.
5. Paulo Nogueira Batista: "Lula e a Globalização", Folha, 12/10/96.
6. Luiz Gonzaga Belluzo: "O Velho Marx e o Rapaz Chesnais", "Carta Capital", 13/11/96.
7. Respectivamente de "Versos Íntimos" e "Ódio Sagrado", de "Grandes Sonetos de Nossa Língua", José Lino Grunewald (ed.), Rio de Janeiro, Nova Fronteira.
8. Ana Miranda: "A Última Quimera", São Paulo, Companhia das Letras, pág. 48.

Gustavo Franco é doutor em economia pela Universidade de Harvard (EUA) e diretor de assuntos internacionais do Banco Central.

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