São Paulo, domingo, 24 de novembro de 1996
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Mulheres submissas ao mal

MARILENE FELINTO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Está morta a vagabunda, James Bond diz a seu correspondente de Londres, fechando um incidente sentimental com mais uma de suas mulheres submissas ao mal. A análise e a citação do episódio é de Umberto Eco, num ensaio sobre as estruturas narrativas de Ian Fleming (1908-1964), o criador de James Bond.
É humilhante ser mulher nos romances policiais de Fleming. "No momento em que a mulher resolve a oposição com o mal para entrar com Bond em uma relação purificador-purificada, salvador-salva, ela volta para o domínio do negativo; (...) a relação erótica findando sempre por uma morte real ou simbólica", Eco conclui.
Está morta a vagabunda. Também pode ser esse o desenlace do thriller erótico "O Corte", da americana Susanna Moore, embora tudo indique o contrário. A protagonista e narradora Frannie é uma professora universitária na faixa dos 30 anos, independente e liberada, ou melhor, pronta para acreditar que independência e liberação femininas são sinônimos de agressividade sexual.
O assassinato de uma mulher perto da casa de Frannie, em Nova York, liga-a ao principal investigador do caso, o detetive Malloy: "Não há muito mais a fazer no caso do assassinato de Angela Sands. (...) Não há testemunhas. Não há evidência física. Somente o corpo. Somente partes do corpo de Angela. O Departamento de Polícia não dá muita importância ao caso. Não se importa muito quando pedaços de uma mulher são encontrados ao longo da West Side Highway".
A relação erótica entre Frannie e o detetive mistura-se à investigação do caso Sands. O romance é uma busca pelos pedaços de uma mulher, da vítima Angela Sands à possível bandida (ou também vítima) Frannie. Enquanto Malloy investiga o corpo de Frannie em atraentes desafios sexuais para ela, a professora faz sua investigação particular, simbolizada por uma pesquisa de linguagem.
O romance policial de Susanna Moore, lançado em 1995, foi celebrado pela crítica americana especialmente por esse aspecto, por estabelecer uma analogia entre escrever e matar. A protagonista, professora de "escrita criativa" na universidade, dedica-se também a escrever um livro sobre a gíria das ruas de Nova York, os regionalismos, dialetos e excentricidades de pronúncia.
Frannie quer que seus alunos saibam que ela não se opõe ao que chama de "desvios da norma culta", tanto na linguagem quanto na vida. Esse é o aspecto mais interessante do livro de Moore, capaz de insuflar ares de novidade no universo cheio de clichês dos romances do gênero -clichês dos quais Moore também não se livra.
A verdadeira ousadia da intriga e da atmosfera de suspense está menos no esclarecimento do crime do que na inter-relação entre linguagem, erotismo e morte. Enquanto prossegue a investigação, desenvolve-se o relacionamento erótico de Frannie com o detetive e dela com a pesquisa linguística, que vai enumerando em dicionário. "Virgínia, s., vagina (como em 'ele enfiou um martelo na virgínia dela'); brasola, s., vagina (do siciliano bresaola? Carne defumada?); fazer, v., foder; fazer, v., matar."
A tradução acompanha precariamente esses jogos de linguagem. O próprio título em português é inexpressivo, sem a força do termo em inglês, "In the Cut", explicado como uma gíria policial pela narradora: "Foi Malloy quem me ensinou. É uma expressão usada por marginais. Por jogadores, quando querem se esconder. 'No corte'. A referência é a vagina. Um lugar onde se esconder. Onde se garantir." Tradução mais adequada seria, portanto, algo como "No Rego", ou outra palavra qualquer mais vulgar para "vagina".
Pena que a novidade no romance de Moore vai aos poucos se dissolvendo no transcorrer da narrativa até perder força e ficar na tentativa. O final do livro é decepcionante não apenas pelo desenlace mais ou menos óbvio, mas principalmente porque as inter-relações se desfazem no nada.
O destino da heroína também não passa do que é reservado às mulheres de James Bond: submissão e fascínio pela virilidade que Bond, ou o detetive Malloy, representam diante do mal.
No final, a heroína confessa: "Era como se eu tivesse que fingir que não sabia o que ele estava a ponto de fazer comigo. Abria o que estava fechado. Insistia. Me manipulando. Me rompendo. Finalmente. E eu, que não queria pertencer a um só homem. Que não queria pertencer a ninguém. Que não queria ser manipulada, ser imobilizada, ter meu coração partido. O que eu queria era ser manipulada, ser imobilizada. Aberta. O velho desejo de ser escolhida, perseguida, disputada, levada embora."
*
A atração de uma mulher por um homem fatal, muitas vezes o bandido, o "serial killer" e suas armas fálicas (a faca, a furadeira, o serrote etc.) é também o centro do enigma policial de "O Homem Fatal", da francesa Irène Frain, outro lançamento da Record.
A trama é fraca e monótona, composta pelas obviedades dos romances de ação policial: uma escada mal iluminada, ruídos de todo tipo numa casa suspeita, um porteiro manco que "detém todas as chaves" etc. Mas o livro merece menção na medida em que também tenta dar consistência a uma protagonista mulher, Juliet, também uma decifradora de signos (como a Frannie do romance de Moore), de ideogramas chineses e de manuscritos antigos.
Juliet se deixa seduzir por um professor que se revela psicopata. Seu fascínio por ele tem a mesma proporção do prazer que lhe desperta a decifração dos manuscritos: "Pela primeira vez na vida, ela falhou na aquisição de um manuscrito. E falhou de propósito. Por desejá-lo para si. Pelo prazer de tê-lo em casa consigo, tocá-lo, decifrá-lo quando bem entendesse".
Quem sabe, como disse um crítico americano, mulheres estão escrevendo romances policiais para assegurar um controle narrativo e imaginativo sobre o terror (e sobre seus papéis de submissas e vagabundas, pode-se acrescentar), o que conseguiriam quando elas mesmas contam a história.
O único problema é que a história das heroínas não muda, desde Agatha Christie -cujo herói principal era mesmo um homem, o detetive Hercule Poirot-, às heroínas, como Juliet, só cabem os papéis de substituição, a sina das amantes do herói: "(...) num instante será a sua rainha amante e amada, não importam as mentiras, não importa sequer a verdade...", Juliet deseja.

Texto Anterior: SZYMBORSKA; HISTÓRIA; CHANDLER; PERFIS; REVISTA 1; REVISTA 2; JULIEN GREEN; CONCURSO; ANTROPOLOGIA; LANÇAMENTO 1; LANÇAMENTO 2; MAIS VENDIDOS
Próximo Texto: A face escura do Iluminismo
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.