São Paulo, domingo, 24 de novembro de 1996
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A face escura do Iluminismo

MARCELO COELHO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Quem se interessa pela literatura francesa do século 18 certamente já ouviu falar da marquesa du Deffand (1697-1780). Amiga de Voltaire, de Hume, de d'Alembert, ela animava um daqueles famosos "salões" onde se reunia a fina flor da inteligência européia.
Mas estou começando esta resenha de forma tola. Trato estas "Cartas a Voltaire" de madame du Deffand, como se fosse mero assunto de especialistas, coisa de "quem se interessa pela literatura francesa do século 18".
Ocorre que o Iluminismo francês, e Voltaire em particular, descobriram tudo o que nos move politicamente até hoje. Idéias como liberdade de imprensa, direitos humanos, tolerância religiosa e o próprio conceito de felicidade foram, sem muito exagero, postas em circulação naquela época. Antes, o que se tinha era um mundo de pecado e punição. Encontrar a felicidade aqui e agora era menos importante do que se salvar no outro mundo.
O Iluminismo foi a rajada de ar fresco que precedeu a revolução de 1789. Hoje, idéias como tolerância, felicidade e direitos se requentam na ideologia do "politicamente correto", como se um ar fresco pudesse ser requentado... é o Iluminismo em estado de contradição, a tolerância transformada em fanatismo, a Razão tornada irracional.
Desta ótica, as cartas de mme. du Deffand ganham atualidade. O interessante é que ela é justamente uma fanática do Iluminismo. Não crê em nada; detesta igualmente os sistemas filosóficos e as ilusões dogmáticas da religião. Tudo a aborrece, qualquer livro, qualquer música, qualquer filósofo ou político. Tudo, menos Voltaire.
Suas cartas são de uma insistência constrangedora. Mme. du Deffand está sempre exigindo mais, pedindo mais, implorando mais obras, mais cartas, mais respostas de Voltaire. "Não deveis escrever uma única palavra sem comunicá-la a mim", ordena. "Voltaire! Voltaire! Todo o resto são falsos profetas!"
Com inúmeras variações, este é o tom das cartas da marquesa. Não apenas um caso de paixão intelectual, podemos ver em mme. du Deffand um fenômeno menos romântico, menos pitoresco, mais sombrio.
Estas cartas retratam o lado mais obscuro do Iluminismo, como que o reverso dialético das Luzes. Adorando, idolatrando Voltaire, mme. du Deffand se torna uma xiita. Há vários fanatismos em jogo naquela época tão liberal.
Em primeiro lugar, a tirania do gosto. O "bom gosto" francês encontra em mme. du Deffand uma defensora radical. Nada lhe agrada, tudo é vulgar, bárbaro, grotesco. Mme. du Deffand se escandaliza ao ver que Voltaire elogiava a música de Gluck, que para ela não passava de horrorosa confusão.
Detestando tudo, mme. du Deffand vivia no tédio. O tédio era o segundo demônio, depois do mau gosto, nessa sociedade refinada. A vida não vale a pena ser vivida: "Toda pessoa nascida sem talentos deveria deixar de viver quando deixasse de ter paixões", diz a marquesa.
Voltaire não compartilha desse pessimismo existencial. Luta contra as injustiças do mundo, zomba dos crédulos, dos intolerantes, dos idiotas. Essa verve alegra mme. du Deffand. Mas ela também diz a Voltaire: "Qualquer pessoa que, tendo alcançado a idade da razão, não se sinta chocada com os absurdos e não entreveja a verdade não se deixará jamais instruir ou convencer".
Não poderia haver contestação maior ao Iluminismo. Que importa? Voltaire, para a marquesa, é um puro divertimento em meio ao tédio, à ociosidade, à inutilidade melancólica de sua própria vida. Além disso, receber cartas suas é fonte de prestígio social.
Mas ela não pára de reclamar. Alguém recebeu antes dela o último livro, o penúltimo panfleto; Voltaire é um traidor, despreza sua amiga. No ócio aristocrático, mme. du Deffand é de uma possessividade burguesa. No século das Luzes, desinteressa-se de tudo. É tolerante até com o erro, com a ilusão; é despótica como amiga, inflexível nos seus julgamentos, amarga consigo mesma: suas cartas mostram o avesso do Iluminismo, seu aspecto mais áspero e menos sorridente.
Só que, nessa amargura toda, mme. du Deffand sabe encantar. Cada carta sua é uma queixa contra a vida e a velhice. Mas leia-se o modo com que se despede de Voltaire, três anos e vinte e nove cartas antes de morrer: "Adeus, meu caro Voltaire, há mais de 50 anos que vos estimo; talvez ainda tenha quatro ou cinco para vos estimar. É a minha sentença que estou pronunciando, não a vossa".

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