São Paulo, domingo, 24 de novembro de 1996
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'Mas é isto, então, morrer?'

LYGIA FAGUNDES TELLES

"A primeira lição da morte que eu tive foi muito primitiva. Quando eu era criança e minha cachorra Kate morreu, fizemos o enterro no quintal de casa. Igualzinho ao enterro que eu vi fazer da irmã do padre, inclusive eu botei a minha bata de anjo, porque tinha que entregar a Kate a Deus.
Mas depois eu fiquei pensando. Cheguei para o meu pai, que era um homem contemplativo, desligadão, meio vago e perguntei: 'Papai, mas o que é a morte? A Kate, onde é que está a Kate? Como é que ela está agora?' E ele então, fumando um charutão, tragou e disse: 'Morrer, dormir, talvez sonhar, quem sabe'. Meu pai gostava dos românticos e justamente essa citação é de um poeta romântico, evidentemente inspirado em Shakespeare.
Mas para mim, uma criança, aquilo não funcionou (...). Na calada da noite, devagarinho eu fui lá no quintal futucar para saber o que tinha acontecido com a Kate. Esse meu contato com a morte foi completamente brutal. Aí eu teria repetido -se tivesse visto na época o filme 'Apocalipse Now'-, como o Marlon Brando: 'O horror, o horror'. Porque eu fiquei horrorizada. Então, eu dizia: mas é isto, então, morrer? Foi o maior choque que tive na minha primitividade de criança, e me foi dado por meio de um bicho."

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