São Paulo, sábado, 30 de novembro de 1996
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Maré zweigueana

SYLVIO BACK
ESPECIAL PARA A FOLHA

O melhor de uma biografia é sua leitura na contramão, de trás para a frente. Foi o que fiz com as 351 páginas de "Stefan Zweig - L'ami Blessé" (Stefan Zweig, o amigo ferido), de Domique Bona, e as 400 de "Stefan Zweig - Le Voyageur et Ses Mondes" (o viajante e seus mundos), de Serge Niémetz, recém-publicados mergulhos existenciais e literários no conturbado universo do escritor judeu-austríaco Stefan Zweig.
Ele, 60 anos, e sua mulher, Elizabeth Charlotte Altman (Lotte), 34, protagonizam um emblemático duplo suicídio em Petrópolis na semana seguinte ao Carnaval de 1942, quando Zweig atravessa as portas da percepção a caminho da imortalidade -como homem, intelectual e autor, entre outros quase 50 livros, de "Brasil - País do Futuro", título que o tempo se encarregou de transformar em perverso epíteto da nacionalidade.
Famoso pelas novelas e biografias ("Fouché", "Freud", "Erasmo", "Américo Vespúcio" etc.), Zweig acabou tão personagem quanto sua ficção.
Sua obra é integralmente reeditada na França e Alemanha, filmes baseados em seus livros e documentários biográficos frequentam as televisões européias, ópera sobre seu exílio no Brasil estréia em Viena, óperas com seus libretos voltam às temporadas líricas.
Na verdade, essa maré zweigueana reproduz o "frisson" no inconsciente do leitor que procura flagrar o criador na criatura. Em Stefan Zweig, isso é de supina pertinência. Sua auto-destruição em holocausto à barbárie nazista que feria a Europa carrega em si a senha moral de um livre-pensador, agnóstico, cosmopolita, equidistante de ideologias, partidos, palavras-de-ordem -inclusive da religião judaica. Um intelectual moderno à toda prova.
Ainda que o suicídio seja um gesto insondável, a morte procurada de Zweig e Lotte jamais deixou de provocar as mais controvertidas interpretações desde a decisão tomada no mesmo Carnaval que tinha Orson Welles filmando seu inconcluso "It's All True", inspirado, aliás, em "Brasil - País do Futuro", publicado nos EUA em 41.
No Brasil, esmiuçando os meses de asilo do casal, o jornalista e escritor Alberto Dines produziu o instigante "Morte no Paraíso", em 1981. Há nele uma detida investigação e naturais fabulações sobre as horas precedentes, o asséptico epílogo e o dia seguinte à morte de Zweig e Lotte. Um perspicaz olhar brasileiro que atualiza a tragédia.
As novas biografias francesas empacam precisamente na exegese da "vida brasileira" de Zweig. Não ultrapassam Dines nem renovam a evocação referencial do inglês Donald Prater ("European of Yesterday - A Biography of Stefan Zweig", um europeu do futuro - uma biografia de Stefan Zweig), de 72. Tanto Bona, num timbre mais romanceado, como Niémetz, com um torque acadêmico (nem por isso menos sedutor), dão apenas as inevitáveis páginas regulamentares para o "episódio Petrópolis".
Se cometem deslizes históricos, como incluir o ditador Vargas no enterro ou errar grafias de nomes e logradouros, isso denota a subliminar desimportância com que rastrearam o fim do casal. Ao contrário do grosso de seus textos, sobre o "Zweig europeu", que ostenta apuro e brilho.
Talvez por não falaram português (ou mal), preferem exumar o "dejà vu et lu" -cartas, diário e memórias de Zweig, poemas, excertos das obras, livros de terceiros- a correr o risco de chancelar uma vertente inusitada sobre seus eleitos.
Daí não ser surpresa que Bona e Niémetz silenciem sobre: 1) a bissexualidade de Zweig; 2) o pânico que se apoderou dele, acusado de haver escrito "Brasil - País do Futuro" para obter do regime anti-semita de Vargas o visto de permanência; 3) um eventual pacto de morte entre o casal; e 4) o suicídio coadjuvante (ou não?) de Lotte, brechas que inoculam seus perfis de um tom hagiográfico.
Ironicamente, entretanto, esse viés "absolve" os autores de qualquer especulação, além do óbvio, sobre o suicídio. Talvez, sem querer, tenham se dado conta de que suicídio é como poema: você não premedita. Simplesmente comete.

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