São Paulo, quinta-feira, 5 de dezembro de 1996
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

"Será que não dá pra parar de dizer 'f***'?"

DAVID DREW ZINGG
EM SP

AVISO: Este artigo contém palavras que alguns leitores, como, por exemplo, sua mãe, possivelmente considerem ofensivas, embora ela (sua mãe) talvez as considere menos ofensivas do que teria considerado alguns anos atrás. Algumas mães nem sequer vão considerá-las ofensivas. É possível que algumas poucas mães até gostem. O editor.
Há uma guerra social em curso, Joãozinho. E não é aquela dos ricos x pobres. É a guerra do uso de linguagem chula.
Hoje em dia o uso de palavrões virou coisa tão comum e corriqueira que enfrentamos o desafio de termos que inventar novos expletivos, se quisermos provocar choque.
O uso de linguagem indecorosa é como a cárie dentária. Se não for refreado, dizem pensadores profundos como meu ídolo Dave "Nunca, nunca mesmo, diga a palavra-f***" Barry, a sociedade tal qual a conhecemos vai acabar como uma tribo de desdentados, tentando em vão mastigar a carne crua das regras internacionais de comportamento, enquanto a baba da decadência escorre por nosso queixo coletivo e suja a toalha de mesa limpa do futuro de nossos filhos.
Uau! Consegui dizer.
Os tempos mudam -não param de mudar. Os defensores da civilidade linguística assistem, consternados, ao processo pelo qual os livros, o cinema e a TV transformam o tom e a aceitabilidade de palavras cujo uso, em outros tempos, só era visto como apropriado em particular, em livrinhos de sacanagem ou para expressar ultraje.
Os ingleses (como sempre) criaram um grupo conhecido como "The Polite Society" (A Sociedade Educada) para lidar com o problema. O presidente da sociedade, um reverendo, diz que o mundo está escorregando para o esgoto, expelindo palavrões pelo caminho.
"A maneira como as pessoas falam hoje em dia, até a maneira como andam, é simplesmente medonha", queixa-se o reverendo.
Experimente dizer isso ao escritor escocês que ganhou um importante prêmio literário um ou dois anos atrás por um livro contendo pelo menos 4.000 exemplos da palavra "f***", que, em inglês, rima com a palavra "muck".
O autor escreveu o livro, pegou o dinheiro e correu até o banco, rindo no caminho.
Os defensores das tradições argumentam que o uso excessivo de palavrões os desvalorizou e enfraqueceu seu uso enquanto válvula de escape social. Acreditam que essa é uma das muitas razões que explicam a ascensão da criminalidade violenta.
"Quando as palavras deixam de chocar, a única coisa que resta a quem deseja fazê-lo é a violência física", declarou um crítico de televisão.
Até mesmo a linguagem gestual foi contaminada pela tendência vulgarizante. Os antropólogos apontam a ascensão implacável do gesto do dedo médio levantado.
"As crianças vêem seus pais fazendo esse gesto no carro", diz um professor. "Depois nós as vemos fazendo-o na sala de aula."
Os cineastas lotam as maiores salas de cinema do mundo com seus produtos recheados de imprecações. Assim, não chega a surpreender que a palavra-f*** esteja se popularizando tanto.
Hollywood gerou uma tendência marcada ao que, ironicamente, poderia ser qualificado como democracia linguística.
Hoje em dia os artesãos da palavra optam sempre pelo mais enxuto, direto e expressivo. Num filme chamado "Heathers" ("Atração Mortal"), ouve-se a seguinte linha de diálogo: "F*** me gentilmente com uma serra elétrica".
Não deixa de formar um contraste marcante com algumas das Grandes Citações do Cinema de Nossos Tempos, como aquela do filme "Now, Voyager": "Oh, Jerry, para que pedirmos a Lua se já temos as estrelas?"
Como disse Jack Lemmon certa vez: "Ninguém fala desse jeito". É uma pena.
Hoje em dia é muito mais provável que venha à sua mente uma frase pontual, graciosa e vibrante de poesia, retirada do filme "O Exterminador do Futuro". Nesse encantador filme de viagens, o grande bardo austríaco Arnold Schwarzenegger cria o seguinte "bon mot" repleto de charme: "F*** you, asshole!" ("F***-se, cuzão!")
São muitas as maneiras sutis pelas quais o ator de cinema moderno pode acrescentar tempero a seu diálogo.
Em "Veludo Azul", Dennis Hopper acrescenta um toque de lirismo a seu papel, simplesmente somando a palavra-f*** ou derivados dela a suas falas, de outro modo comuns e corriqueiras.
Hopper foi o pioneiro dessa técnica simples, porém brilhantemente eficiente, pela qual as sentenças comuns são enriquecidas pelo acréscimo d'Aquela Palavra em estado puro e impoluto, sem ser tolhida por pontuação de qualquer tipo.
Exemplos: "Não olhe para mim f***". "Saia do carro f***."
Tio Dave, como você talvez recorde, Joãozinho, é natural de um Estado da Gringolândia chamado Nova Jersey.
A poucos quilômetros da Universidade Princeton, ao lado do lugar onde ele nasceu, está situado o povoado de Raritan.
Você pode dizer o que quiser sobre esse lugar, mas uma coisa é inegável: é um f***ing ótimo lugar para se viver.
Em Raritan, ninguém fala palavrões -por lei.
Ou, pelo menos, ninguém os fala perto dos representantes da força policial local, cujos deveres agora incluem a implementação da primeira medida legal antipalavrão dos EUA.
O prefeito de Raritan está se esforçando ao máximo para transformar sua cidade na capital da boa educação da América.
"Os cidadãos decentes estão fartos de ser verbalmente agredidos por pessoas que acham que mau comportamento e linguagem chula são 'cool"', diz.
Os grandes métodos imaginativos pelos quais o sujeito transmite emoção à garota estão sendo varridos do mapa por versões curtas e feias.
Você se lembra daquela cantada impagável em "Casablanca" -"Será que ouvi tiros de canhão ou era apenas meu coração batendo forte?"
Hoje, todo cavalheiro pensante tem um lugar em seu repertório para aquela frase tirada de "Corpos Ardentes": "Hey, lady, wanna f***?" (Ei, garota, quer f****?)
Enquanto a garota em questão, indignada, sai de sua vida para sempre, ela bem que poderia te desarmar com um rápido chute nos testículos e uma "coup de grace" tirada do "remake" de "Scarface": "Será que não dá pra você parar de dizer f*** o tempo todo?"

Tradução Clara Allain

Texto Anterior: Comer, matar, viver
Próximo Texto: Gidon Kremer toca Astor Piazzola erudito
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.