São Paulo, quinta-feira, 5 de dezembro de 1996
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Gidon Kremer toca Astor Piazzola erudito

LUIS S. KRAUSZ
ESPECIAL PARA A FOLHA

Astor Piazzola marcou sua presença, na música do século 20, como compositor, intérprete e improvisador de uma música que tem no tango seu principal fundamento e no bandoneón seu instrumento por excelência.
O que nem todos sabem é que, por trás da sua persona folclórica, encontra-se um músico com sólido conhecimento de música erudita e um grande contrapontista.
O multiculturalismo de Piazzola, assim, deve-se não só à heterogeneidade das influências musicais existentes no tango (e na Argentina) -que vão do folclore italiano ao alemão, do judaico ao espanhol-, mas também a essa sua faceta erudita, que o aproxima, de certa forma, de Villa-Lobos.
Com Villa ele compartilhava a reverência por Johann Sebastian Bach e, se prestarmos atenção nas partituras de suas obras, veremos a presença dos movimentos harmônicos sequenciais bachianos, invariavelmente encaminhando-se em direção a uma cadência.
É por tudo isso que o novo disco de Gidon Kremer, "Hommage a Piazzola", em que um dos maiores violinistas eruditos da atualidade interpreta obras de Piazzola, ao lado de conjuntos formados por instrumentos como viola, piano, bandoneón, clarinete, baixo e percussão, é bem menos estranho do que poderia parecer.
Na realidade, o que esses instrumentistas fazem é simplesmente privilegiar o lado erudito de Piazzola. Suas interpretações são bem mais contidas, rigorosas e lentas do que se está acostumado a ouvir.
Kremer e seus colegas (Vadim Sakharov ao piano, Arne Glorvigen ao bandoneón, Svjatoslav Lips ao baixo) criaram arranjos que evidenciam a perfeição por meio dos detalhes.
A ênfase está em cada nota apenas sussurrada, na sutileza de cada pequena sequência harmônica, não no copioso derramamento emocional característico do tango, numa leitura que poderia ser qualificada como minimalista.
Ao aliviar a música de Piazzola de seu ornamento sonoro é como se eles pusessem uma lente de aumento sobre a sua estrutura.
E o que se revela é uma sofisticada arquitetura musical, rica em contrapontos e que muitas vezes lembra a sofisticada música de câmara de Rachmaninoff -como por exemplo na "Milonga en Re", com suas dissonâncias.
Assim, não se trata, aqui, simplesmente de mais um caso de cross-over e sim de um cuidadoso trabalho de orquestração e releitura, uma espécie de versão nórdica daquele que conseguiu transformar uma forma musical pequena num veículo de grande âmbito.
Essa transição feita por Kremer e seu conjunto, aliás, já estava na música de Piazzola, em estado de latência, e parecia esperar para ser percebida. O resultado, portanto, é dos mais felizes.

Disco: Hommage a Piazzola
Artista: Gidon Kremer
Lançamento: CD importado da Warner (série Nonesuch)
Preço: R$ 25 (em média)

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