São Paulo, domingo, 8 de dezembro de 1996
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A fraqueza da social-democracia

LEDA MARIA PAULANI
ESPECIAL PARA A FOLHA

Diz um velho ditado que o peixe morre pela boca. Se não houvesse nenhuma reação de Gustavo Franco às ponderações que fiz em artigo no Mais! de 27/10/96 ("A 'franqueza' da social-democracia"), minha singela tese quanto ao caráter ideológico de sua postura (e de suas proposições) constituiria tão-somente mais uma das muitas críticas que ele vem recebendo, críticas que apontam todas, independentemente da filiação político-ideológica de quem as formula, para a inconsistência a longo prazo da atual política econômica (a armadilha câmbio-juros, a insustentabilidade do déficit em transações correntes e da dívida pública, a anemia das exportações etc.). Contudo, por razões de ordem superior, talvez, Gustavo Franco houve por bem responder-me ("Os parnasianos alternativos", Mais!, 24/11/96), e a natureza de sua réplica deixa-me numa situação bastante confortável.
Tomando meu artigo como base e restringindo sua resposta a seus críticos à esquerda, ele compara-nos a "ufologistas", "horoscopeiros", "misticistas" e designa todas as considerações teóricas que não coincidem com as suas de exóticas e incompreensíveis. Pode alguém querer demonstrações mais cabais quanto à pertinência de minhas considerações?
Tal como o fanático que julga que religião verdadeira é só a sua, Franco apresenta suas posições teóricas como as verdades últimas e o resto como crendice. Não se trata de ingenuidade, porém. Ele sabe perfeitamente (presumo) que nada há de mais controverso no universo do conhecimento científico do que as chamadas ciências sociais, particularmente a ciência econômica. Se ele se faz de rogado, é porque é esse o papel que ele tem hoje a desempenhar no governo. Mostrar como verdade inexorável aquilo que é discutível é prática costumeira em situações tais, pois que acaba por mascarar aquilo que de fato está em jogo. E o que é que está em jogo, afinal de contas? O que está em jogo são os desdobramentos de uma política dita de "estabilização".
O fator fundamental a considerar é o contexto que dá guarida à adoção de tais medidas. Na esteira dos planos anteriores na Argentina e no México, o Plano Real é parte de um programa mais amplo que busca efetivar transformações afinadas com o novo diapasão da economia mundial. Não se trata, pois, de um simples plano de combate à inflação. Muito mais do que uma aspiração nacional, a estabilidade monetária aparece, principalmente num mercado importante como o brasileiro, como imposição determinada pelas novas condições de circulação e valorização dos capitais.
Não adiantaria grande coisa a maior liberdade de movimentos se os capitais tivessem de enfrentar a incerteza congênita quanto à magnitude das variáveis reais que caracteriza os regimes de alta inflação e, particularmente, aqueles com mecanismos formais de indexação, como o do Brasil pré-Real. A abertura e as privatizações, de seu lado, afiguram-se indispensáveis para a costura do grande mercado global e para a transferência, aos domínios do setor privado, de todas as oportunidades de investimento ainda em mãos do setor público (o caso "Vale" é, nesse sentido, emblemático).
Em poucas palavras, o Plano Real e seus apensos tratam de remover, do espaço que lhes compete, os entulhos da época do Estado planejador. Daí que o crescimento, o emprego, a diminuição das desigualdades, a conquista da cidadania para todos os brasileiros etc. não estejam em seu horizonte. Se puder haver também crescimento, ótimo; se não, as medidas recessivas estão aí mesmo; se houver desindustrialização, que fazer?; se o desemprego aumentar, paciência, é o preço que temos de pagar (o modelo não é para os excluídos, lembrou imperturbavelmente o presidente).
Politicamente, contudo, o plano é vendido de outra forma. Não é à toa, portanto, que se falou em revolução copernicana a respeito do texto de Gustavo Franco que começou toda esta polêmica. Demonstrar macroeconomicamente que as medidas em curso levarão sem sombra de dúvida ao crescimento, à redução das desigualdades e à conquista de um lugar ao sol no mercado mundial, constitui tudo que o governo poderia querer ouvir, é música divina tocada por querubins.
Maquiavelismo? Não, evidentemente. Nem maquiavelismo, nem macrocosmologia delirante, nem teoria conspiratória da história. São questões objetivas que estão na berlinda, transformações profundas que estão em curso em nível mundial, ensejando enormes alterações em países como o Brasil. Metade vítimas, metade cúmplices, os propositores e executores da atual política econômica são levados a desempenhar um papel do qual julgam ter pleno controle e perante o qual se comportam como se autonomia tivessem. Daí a defesa enfática e sem peias levada a efeito por Gustavo Franco, mesmo quando, mais globalistas que a Globo, os "policy makers" "erram a mão" (política cambial, relações do Brasil com a Organização Mundial do Comércio etc.).
É essa posição dúbia que Franco trai, quando apresenta, ao final de sua resposta, a agenda de questões a serem resolvidas: como reformar o Estado, como obter o equilíbrio fiscal, que curso dar ao programa de privatizações, o que fazer com a RFFSA?
Se a preocupação é efetivamente com nosso país, a agenda deveria ser outra: que fazer com 50 milhões de brasileiros que não dispõem nem sequer de uma certidão de nascimento, que perspectiva dar aos jovens das periferias das grandes cidades, sem projeto algum a não ser o de arrumar uns trocados para a próxima cachimbada de crack, o que fazer com a saúde pública, o que fazer com a catástrofe que perambula pelas ruas de São Paulo, Rio etc.? O mercado acaso vai resolver isso tudo se nos dobrarmos a seu império?
Posso, portanto, retomar as considerações que fiz anteriormente. Gustavo Franco, seus textos, suas proposições, seu discurso, são frutos de um momento histórico específico, em que a dominância do credo liberal não deixa lugar ao dissenso. E eis que temos então redivivo, ao final do século 20, o nosso Joaquim Murtinho (o mesmo que, outrora, em seus trabalhos acadêmicos, Franco enquadrara como "conservador" e "rudimentar"). Como diria um "Nostradamus" mouro cada vez mais atual, a história repete-se duas vezes, a primeira como tragédia, a segunda como farsa.

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