São Paulo, domingo, 8 de dezembro de 1996
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O último inimigo da Grande Nação

JACQUES RANCIÈRE
ESPECIAL PARA A FOLHA, DE PARIS

Os extraterrestres estão aí. Eles já deram início à ofensiva. Los Angeles desapareceu num dilúvio de fogo. E o "alien" capturado e interrogado acerca de seu interesse sobre nossa Terra deu como resposta o único vocábulo inglês que conhece: "death" (morte).
Na manhã daquele 4 de julho em que os EUA celebram a independência, o juvenil presidente dirige a suas tropas uma mensagem de circunstância: não nos batemos mais, como nossos antepassados, pela liberdade e a democracia, ele lhes diz em suma, nós nos batemos pela sobrevivência. O entusiasmo convence os participantes da idéia deste desafio, tanto mais excitante que o antigo, e do qual se sairá vitoriosamente triunfante, graças à cooperação de um cérebro branco e dois braços negros.
Trata-se, como sabemos, de uma ficção americana que corre mundo pelas telas de cinema sob o nome de "Independence Day". E podemos indagar se vale a pena levar a sério esta declaração de ficção-política. Semelhante ênfase sobre a luta pela sobrevivência não faz parte simplesmente da dosagem de "stimuli" de choque que integram o coquetel dos filmes-catástrofes? O argumento seria convincente, se justamente a fórmula do filme não parecesse ligeiramente desfocada. Visões do apocalipse e efeitos especiais nele permanecem um tanto modestos, em comparação com outros filmes do gênero.
Insistente, pelo contrário, é a representação de uma América tranquila, na qual este presidente que faz face ao extermínio não abre mão de exercer, em atenção à sua filha pequena, a estrita repartição das tarefas parentais, dando ensejo, pelo exemplo das suas virtudes domésticas, à regularização das uniões livres, à reconciliação dos casais desunidos e à reabilitação dos beberrões.
Em resumo, o roteiro-catástrofe comporta uma estranha discrepância: de um lado, ele faz apelo a todas as virtudes morais em que um povo adora se reconhecer, a ponto de imaginar a moral um bocado desusada segundo a qual um piloto que regularizou sua situação conjugal redunda num combatente mais eficaz. De outro lado, ele nos ensina que, no tempo da grande ameaça, os ideais comuns da liberdade e da democracia associados a tais virtudes privadas estão, eles sim, votados à prateleira de uma loja de antiguidades.
Podemos então nos indagar sobre a relação entre a virtude moral dos bons pais de família e uma virtude política em que a luta contra a morte se substitui inteiramente aos ideais democráticos. Por certo reconhecemos aqui a persistência de uma lógica binária privada de seu outro. Antes dos "aliens", eram os vermelhos de quem se esperava o desembarque em Los Angeles ou San Francisco.
Nestes tempos, a certeza da vitória americana era a da vitória da liberdade e da democracia sobre seus inimigos mortais. Combatia-se ou fingia-se combater para saber se valia mais a pena ser "red" ou "dead". Se não há mais risco de nos tornarmos vermelhos, resta a única ameaça de ser morto, e a fórmula do embate supremo pode enunciar-se de modo singelo: "better alive than dead" (melhor estar vivo do que morto).
A dedução é lógica. Contudo, essa lógica ficcional resulta num tom peculiar em relação ao tom dominante da ciência política e da historiografia contemporâneas. Esta nos relata, de fato, que o colapso do império soviético é o triunfo de uma democracia definitivamente reafirmada em seus ideais num mundo não mais submetido à partilha de dois blocos hostis.
A vitória sobre o inimigo totalitário torna idênticos o reino da paz e o da democracia. Toda uma escola historiográfica contemporânea identifica este fim do ciclo revolucionário de nosso século ao fim do longo ciclo da democracia revolucionária, aberto pela Revolução Francesa. A pretensão revolucionária a uma refundação radical da comunidade teria ligado a democracia ao vazio da ideologia e à violência do terror num período de que mal nos desvencilhamos.
Poderíamos hoje, para além dessa prolongada catástrofe, reatar a boa tradição da democracia, a dos "founding fathers" (pais fundadores) americanos, a democracia razoável, liberal e realista, fundando a paz pública sobre o exercício das virtudes privadas e o espírito empreendedor dos indivíduos.
Ora, é justamente essa "americanidade" exemplar que o discurso do presidente-aviador de "Independence Day" faz voar pelos ares. Ele acaba por arruinar a identificação edificante do bom governo com o reino da paz, do empreendimento e da liberdade.
Os filmes-catástrofes não são simplesmente ficções que, a preços módicos, restituem as emoções aos que desejam a um só tempo gozar dos favores da paz democrática e combater o tédio por ela ocasionado. Eles nos relembram que a própria ficção estatal não prescinde tão facilmente da figura do inimigo, da representação da ameaça absoluta.
Em certo sentido, a lição do filme-catástrofe com efeitos especiais não é diferente daquela evidenciada no dia-a-dia dos governos racionais: hoje, não é mais a luta da liberdade e da igualdade contra seus inimigos que deve ocupar nossas sociedades, mas a luta pela sobrevivência, que está à mercê do menor desvio normativo. A mais ínfima alta de salários, a mais diminuta baixa das taxas de juros, a menor reação imprevista dos mercados podem bastar, de fato, para arruinar o equilíbrio acrobático sobre que repousam nossas sociedades e lançar todo o planeta no caos.
A invasão dos monstros extraterrestres que querem apenas a morte é em suma a figuração, sob forma de espetáculo, desse temor rasteiro que funda o exercício legítimo do governo gestor. E é também a ilustração de um dos grandes mitos fundadores da filosofia política moderna: a ameaça da guerra absoluta que exige a alienação dos direitos de cada qual. Ora, em Hobbes, é de cada um dos homens que vinha para os outros a ameaça de morte. E, até hoje, foi sempre um outro povo, um outro sistema político que se prestou para figurar como inimigo, à força de sua ameaça de servidão ou morte.
A América de "Independence Day", esta, não se acha mais ameaçada por nenhum outro inimigo senão a própria morte, o que por sua vez torna problemática a sua figuração.
Um outro filme-catástrofe recente nos ajuda compreendê-lo. Em "A Rocha", não é a armada de extraterrestres que ameaça San Francisco com a morte química. É um general americano, antigo herói da Guerra do Golfo, a exemplo do presidente de "Independence Day". E, se ele toma a cidade como refém, é no fito de obter as indenizações para as famílias dos soldados mortos em combate e que a América não quer reconhecer. É, em suma, para dar a conhecer a realidade da morte nas guerras reais. Ora, precisamente, tal realidade perdeu seu direito de cidadania. As guerras movidas pela Grande Nação não passam de operações de polícia em que a todos é garantida uma vida incólume.
A única guerra "verdadeira" é a guerra total travada contra a Morte absoluta. Como bom patriota, o general rebelde acabará por reconhecê-lo. Ele renunciará à empreitada sanguinária destinada a provar a existência empírica da morte. Ele se fará matar para provar que a morte não existe. Tudo está bem que termina bem.
É no entanto um estranho jogo entre a morte enfrentada e a morte denegada, entre o temor absoluto e a serena confiança que possuem em comum os efeitos especiais dos filmes de apocalipse e os discursos cotidianos dos governos. A tragédia, segundo Aristóteles, deve purificar o temor por ela suscitado, transformar em prazer do saber a inquietude da identificação, conter a paixão no espaço lúdico do teatro.
Podemos nos perguntar o que produzem ao certo as comédias apocalípticas com seus temores gigantescos, tão facilmente neutralizados. Podemos nos perguntar o que produzem tais promessas de nos livrar da morte empírica ao preço da mobilização absoluta contra a morte imaginária. Será que elas não conduzem à busca de responsáveis imaginários pela ameaça que continua, promessa ou não, a pesar sobre toda a vida?
Esse outro absoluto, o "alien", a morte, o único autorizado a figurar como inimigo, não seria o mesmo que, ao tempo da grande paz democrática proclamada, vem mais prosaicamente identificar-se à figura do Outro: o representante da outra raça, da etnia irreconciliável ou da religião que colocam em risco nossa identidade e nossa sobrevivência?

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