São Paulo, domingo, 8 de dezembro de 1996
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Os fantasmas da noite

CARLOS HEITOR CONY

Rio de Janeiro - Das coisas boas que Mila me deixou, além da saudade brutal que não vai embora, a mais importante é Títi, uma setter dourada como sua mãe, que esta semana completou dez anos. Tanto o socialismo como o neoliberalismo, com motivações antagônicas, acreditam que homens e nações devam ser iguais. Pode ser. Com os cachorros é diferente.
Mila não perdia tempo com banalidades. Nunca se rebaixou a ver TV. Dava-lhe as costas, preferia ficar me assistindo, eu era o seu espetáculo -o que era recíproco. Contudo não podia ver uma videogravadora ou máquina fotográfica apontada para ela, logo fazia caras e bocas, era uma lady, uma rainha de Sabá.
Títi é diferente. Despreza ser fotografada, em compensação, adora ver TV -mais até do que o recomendável. A mania começou há cinco anos, com a Guerra do Golfo. Ela cismou com a cara do Saddam Hussein e latia para ele. Enquanto durou a guerra, vigiou a TV, esperando que ele aparecesse para encolerizá-la. Meu vizinho judeu veio reclamar dos latidos, quando soube para quem Títi latia, pediu desculpas, a mim e a ela.
A guerra acabou, a mania ficou. Com o tempo, Títi descobriu outras coisas para gostar ou desdenhar na TV. Não gosta de desenhos animados nem de shows de auditório. Instalei um aparelho em seus domínios, ligado no canal Discovery, que exibe umas viagens pela África, animais, peixes, essas coisas. Ela passa horas diante daquilo que o canal chama de "maravilhas do nosso universo".
Basta eu apagar a luz e me deitar, ela abandona as maravilhas do nosso universo e vem dormir no tapete ao lado da minha cama. Quando tem pesadelo e começa a gemer, basta que eu bote a mão em sua cabeça e tudo passa.
Quando sou eu que enfrento meus fantasmas, faço a mesma coisa. Sinto a sua cabecinha na minha mão -e os fantasmas, derrotados, urrando, são tragados pela noite e desaparecem.

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