São Paulo, terça-feira, 10 de dezembro de 1996
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Basta de jeitinhos

LUÍS PAULO ROSENBERG

O escândalo dos precatórios estaduais é só um exemplo de como estamos distantes da construção de uma sociedade ética.
Note a cadeia (sem insinuações!) de valores complacentes de que se necessita para viabilizar a operação: um governador que sabe estar violando a letra da Constituição ao aceitar um artifício gerador de recursos para seu Estado; um banqueiro respeitado que considera cafetinar essa pedofilia financeira o lançamento de um "produto" e, assim, justifica ter cobrado R$ 55 milhões por atuar em duas negociatas; uma quadrilha de pequenas instituições financeiras que faz troca-troca do papel estadual emitido a preço subsidiado, ganhando rios de dinheiro sem nada adicionar ao processo; um Banco Central e um Senado letárgicos, que tudo vêem em silêncio.
Igualmente execrável, mas pelo menos com desdobramentos mais pedagógicos, é o episódio da cobrança de comissão por um deputado federal para que uma empreiteira tivesse por ele garantida a permanência no próximo Orçamento federal dos recursos de um projeto de seu interesse.
Era de imaginar que tal poder discricionário tivesse sido eliminado, depois do escândalo dos anõezinhos. Que nada: não fosse a integridade isolada de Gustavo Krause, buscando apurar o rumor até as últimas consequências, a maracutaia passaria incólume.
Ora, numa sociedade democrática e economicamente aberta, o sistema deveria ser suficientemente robusto para confinar tais ocorrências à categoria reduzida das "exceções", não para aceitá-las como "práticas usuais de mercado".
Acontece que estamos descobrindo que a erva daninha da prevalência dos interesses de grupos sobre o bem-estar da maioria é mais difícil de erradicar desta nossa sociedade habituada à corrupção do que a própria inflação. E, se não nos livrarmos dela, a inflação voltará.
As implicações de corrupção nos precatórios e na cobrança para incluir verbas no Orçamento federal são irmãs siamesas da imposição de alíquotas de importação de 70% para brinquedos e automóveis.
O que têm em comum? A submissão dos anseios da maioria ao jeitinho que beneficia setores empresariais bem organizados para pressionar o governo.
Quem tentou comprar um carro popular nacional recentemente descobriu, perplexo, que teria de pagar 50% mais caro do que se tivesse comprado antes da subida pornográfica das alíquotas.
Óbvio: fechado o mercado brasileiro à ameaça dos carros importados mais baratos, as montadoras aqui instaladas começaram a esbórnia da recuperação cartelizada dos lucros.
Similarmente, compare os preços que terão de ser pagos para comprar brinquedos neste Natal com os praticados no ano passado: você vai cair de costas com os reajustes de margens, propiciados pelo Papai Dornelles aos fabricantes nacionais quando também impediu a concorrência estrangeira nesse setor de entrar no Brasil.
Claro, às vezes a cobra pica o próprio rabo. Nesse contexto de irracionalidade, Fernando Henrique sentiu-se em casa para apoiar uma emenda constitucional que criava a CPMF, contrariando os apelos de todos os economistas com QI suficiente para não babar na gravata e fazendo-se de surdo aos argumentos de sua própria equipe econômica.
A 15 dias de sua implantação, arrependido, o governo descobre que a CPMF vai liquidar com as Bolsas de Valores brasileiras, pois será muito mais lógico negociar Telebrás em Nova York do que pagar um pedágio de 0,20% a cada compra ou venda no Brasil.
Cogita-se, então, de isentar as Bolsas do tributo. Perfeito, desde que se isente também o assalariado, quando emitir cheques para pagar remédios para seus filhos, a viúva, quando vender o barraco de dois cômodos deixado pelo finado para garantir seu sustento, ou o diabético, quando compra insulina.
Em suma, acabemos de vez com a CPMF ou convivamos todos com a estupidez desse imposto. O que não dá é para continuarmos sempre a livrar a cara apenas dos segmentos mais bem organizados da sociedade.

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