São Paulo, terça-feira, 10 de dezembro de 1996
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O júri ainda não voltou

PIERRE SANÉ

O presidente Cardoso anunciou recentemente que "hoje nosso país não é mais considerado réu lá fora (...) porque agora o país tem uma política de direitos humanos". Referia-se a uma decisão da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, relativa ao adiamento das audiências sobre o massacre do Carandiru até que seja possível avaliar os efeitos da transferência do caso dos tribunais militares para os civis.
O caso não foi arquivado, mas teve seu exame adiado. Assim, levando avante a metáfora do presidente, talvez seja mais adequado dizer que "o júri ainda não voltou", nesse caso. A comunidade internacional continua observando o Brasil, a fim de detectar progresso na redução das violações dos direitos humanos ocorridas tanto nas áreas rurais quanto urbanas, teste de qualquer política de direitos humanos.
A Comissão de Direitos Humanos das Nações Unidas, que examinou em julho o cumprimento pelo Brasil do Acordo Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, certamente aplaudiu a franqueza do governo brasileiro na discussão da situação dos direitos humanos, bem como o lançamento pelo mesmo do Programa Nacional de Direitos Humanos.
Mas a comissão expressou "profunda preocupação com os casos de execuções sumárias e arbitrárias perpetradas por forças de segurança e esquadrões da morte", "a prevalência da tortura" e de "condições intoleráveis em presídios e cadeias".
Em suas observações finais, a comissão lamentou que tais violações "em raros casos sejam devidamente investigadas e com muita frequência permaneçam impunes". Expressou seu temor de que "medidas tomadas para garantir a implementação dos direitos do acordo através de todo o território da Federação permaneçam ineficazes e inadequadas" e pergunta "se o governo federal terá estabelecido os meios necessários para assegurar que os governos estaduais e locais do país efetivamente protejam os direitos definidos pelo acordo".
A comissão recomenda que "todas as queixas sobre conduta imprópria de membros das forças de segurança sejam investigadas por um órgão independente e não pelas próprias forças de segurança".
E hoje, no Dia dos Direitos Humanos, talvez possamos refletir sobre o que foi feito no Brasil para combater a impunidade. Ficou determinada por lei a transferência, dos tribunais militares para os civis, da jurisdição dos casos de homicídio cometidos por policiais militares em serviço ativo.
No entanto, num truque de prestidigitação, o Senado garantiu a limitação da jurisdição civil aos homicídios intencionais e a manutenção, pela Polícia Militar, da responsabilidade pela investigação desses crimes e da determinação da intencionalidade dos mesmos.
Assim, embora os processos relativos aos massacres de Corumbiara e Eldorado do Carajás tenham sido transferidos para os tribunais civis, as investigações originais foram levadas a cabo por policiais militares.
E, a menos que seja aprovada uma nova legislação, a Polícia Militar continuará a encarregar-se da investigação de violações de direitos humanos cometidas por seus próprios integrantes.
O massacre de Eldorado do Carajás foi o nono sucessivo sobre o qual a Anistia Internacional pediu às autoridades federais que assumissem as investigações e preservassem as provas materiais.
Uma das propostas do Programa de Direitos Humanos do governo criaria mecanismos para investigar e julgar, em nível federal, violações de direitos humanos cometidas nos Estados, em casos de clara omissão em nível estadual. Tudo indica que a medida esteja encontrando resistência e tenha seu andamento prejudicado.
Se tal legislação já estivesse em vigor, talvez as autoridades federais tivessem erradicado o esquadrão da morte "Meninos de Ouro", do Rio Grande do Norte, quando suas atividades foram denunciadas pela primeira vez, em 1995. Se o tivessem feito, talvez o movimento pelos direitos humanos não tivesse perdido um de seus corajosos membros, Gilson Nogueira, advogado morto a tiros diante de sua casa num subúrbio de Natal em outubro, após ter investigado tenazmente os crimes atribuídos ao esquadrão da morte.
Não resta dúvida de que houve progresso. Abriu-se uma pequena fissura na muralha da impunidade, em abril, com a primeira condenação em relação ao massacre da Candelária. Desde então tiveram lugar outro julgamento e outra condenação, e o terceiro deverá concluir-se hoje.
Mesmo aplaudindo o fato de os julgamentos estarem se realizando, a Anistia Internacional preocupa-se com a possibilidade de que nem todas as provas relativas ao massacre tenham sido apresentadas aos júris.
E, aqui, a implementação de mais uma das propostas do Programa de Direitos Humanos do governo é relevante -o estabelecimento de um programa de proteção a testemunhas.
O governo assumiu a proteção de Wagner dos Santos por ocasião dos julgamentos da Candelária, e isso foi amplamente reconhecido e aplaudido. Mas perguntamos: e as testemunhas restantes do massacre da Candelária, que foram abandonadas à própria sorte nas ruas? E os camponeses que testemunharam o massacre de Eldorado do Carajás?
Assim, a comunidade internacional continuará a observar, para ver se o Congresso renova esforços no sentido da aprovação de leis que implementem o programa, inclusive os projetos de lei que definem a tortura como crime, asseguram a proteção de testemunhas e possibilitam a investigação federal de violações de direitos humanos. Até lá, como foi dito acima, o júri permanecerá em deliberação.

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