São Paulo, quarta-feira, 11 de dezembro de 1996
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Um tio e um sobrinho

CARLOS HEITOR CONY

Rio de Janeiro - De longe, acenando os braços, mostrando-me uma vaga impossível em Ipanema, parecia um guardador comum, um flanelinha. Depois de me ajudar a estacionar, ele me chamou de tio e eu olhei com espanto para o recém-sobrinho que ganhava imprevistamente.
Era mais para gordo, alimentado, limpo, bem vestido, uma camiseta de boa malha, parecia um estudante secundário de classe média. E ali estava, na tarde de sábado, ganhando uns cobres para a dura vida.
Tão dura que me pediu o dinheiro adiantado. Perguntou o que eu fazia na vida, já que nada lhe perguntei. Ao saber que era jornalista, disse que o pai dele também fora jornalista, deu o nome, repórter policial, tinha dois tiros na coxa. Aos 45 anos casara-se com uma loura 20 anos mais jovem, tiveram dois filhos, ele, o caçula, e uma irmã, que fugiu com um punk para não sabia onde.
Falava compulsivamente, sempre me chamando de tio. O pai morrera de hemorragia, num dia de Ano Novo, no corredor de um hospital da zona norte. Começara a passar mal à tardinha, a mulher declarou que iria ver os fogos em Copacabana, que ele se virasse com o seu sangue e a sua hemorragia.
"Tio, fui com o pai, ele botava sangue pela boca, chamava por minha mãe, gritava por ela, morreu chamando por ela. E ela estava na praia, com as amigas e o amante, que hoje é o meu padrasto. Tio, ele me expulsou de casa, eu quero estudar na Europa, dizem que lá é melhor, tio, não deixe seu carro engrenado que eu quero abrir mais vagas, tio, a mãe ainda está bonita, meu pai tirou-a de uma favela da Ilha do Governador, tio, o senhor deve saber, por que essas coisas acontecem?"
Ainda que soubesse, nada respondi. Notei que o rapaz tinha uma ligeira dificuldade na fala -tal como eu, quando tinha mais ou menos a idade dele. Não deu para considerá-lo sobrinho de verdade. Mas me senti um pouco tio de mim mesmo.

Texto Anterior: Uma grande encenação
Próximo Texto: Economia e teologia
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.