São Paulo, domingo, 15 de dezembro de 1996
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DESTINOS

JOÃO SAI

Paulo Emilio leva a luta de classes para o palco em peça escrita e encenada na prisão
PAULO EMILIO SALLES GOMES

Personagens:
Álvaro: 20 anos, estudante
Carlos: 19 anos, estudante
Lauro: 21 anos, tipo de cabaré (gigolô)
João: criado
Ruy: operário

1º Ato

Uma sala com mesa de estudos cheia de livros e revistas. Uma cadeira simples. Ao lado uma cadeira preguiçosa com uma mesinha à esquerda com cigarros.
Ao levantar o pano, Carlos está à mesa sem paletó, estudando.

Álvaro - (Entrando, de pulôver.) Bom-dia, bichão.
Carlos - Bom-dia? São unicamente quatro horas da tarde, saiba.
Álvaro - Puxa, que dormida em regra. Também não é à toa. Ontem o diabo do cabaré me deixou tonto: a diabinha da Lula com aqueles pernões me virou a cabeça. Macacos me mordam. Me assustei quando o Lauro me disse serem cinco horas. Mas valeu a pena. Só o diabo do uísque falsificado me deu dor de cabeça.
Carlos - Muito bem. As pernas da Lula, o gigolô do Lauro.
Álvaro - Mas...
Carlos - Espera... O uísque falsificado, tudo isso tem muita graça, e dizem mesmo que é gostoso. Mas eu compreendo isso de vez em quando. Mas todo o dia é uma indecência, simplesmente uma indecência!
Álvaro - Chê, estava demorando. Lá vem você com suas lições de moral.
Carlos - Não é lição de moral. Mas isso que você anda fazendo é uma indecência. Tapeando Papai, que pensa que você está estudando em São Paulo, estragando sua saúde, enfim, gastando toda sua mocidade nessas cretinices de pernas de Lula, uísque e amigos como aquele tipinho do cabaré, o tal Lauro.
Álvaro - Eu acho bom, Carlos, você ver como é que fala de meus amigos.
Carlos - Ora, você com histórias. Você mesmo diz que aquele sujeito é gigolô, recebe dinheiro de mulheres da vida, toma cocaína, parece até que é meio invertido sexual, e agora vem aqui defendê-lo.
Álvaro - Mas você é besta, Carlos. Você está aqui em São Paulo, mas parece que ainda não saiu de Mococa. Isso aqui não tem importância. Todo moço de boa aparência é assim.
Carlos - Ah! Aqui em São Paulo é elegante todo moço de boa aparência ser pederasta?
Álvaro - Não venhas com brincadeiras. O Lauro o que é, é um rapaz sem preconceitos, que não liga para certas coisas.
Carlos - Que ele não liga eu bem sei...
Álvaro - Você, Carlos, com esse caipirismo me envergonha.
Carlos - Bem: e os estudos, como é? Não vai mais à universidade? Há quantos dias você não aparece lá? Vinte ou um mês?
Álvaro - Lá vem você com sua mania de exagerar. Ainda há uma semana eu estive lá. Deixa estar. Quando estiverem faltando uns dois meses, eu me mexo.
Carlos - No ano passado e no atrasado você também esperou faltarem dois meses e acabou repetindo o ano. Você está há quase três anos no 1º ano da escola.
Álvaro - No ano atrasado, em 1932, foi a revolução de São Paulo. Explica-se portanto.
Carlos - Explica o quê? Você não foi para o front nem nada. Ficou aqui sem fazer nada.
Álvaro - Pelo menos não banquei o besta como você, que esteve no front, quase morreu, e agora mete o pau na Revolução Constitucionalista. Eu pelo menos sou coerente.
Carlos - Você é coerente só na moleza. Você está sempre onde estiver a comodidade. Quanto ao fato de eu ter combatido por São Paulo, isso não tem importância nenhuma. Eu estava certo, naquela época, que, se a revolução de São Paulo vencesse, tudo melhoraria, o povo seria mais feliz, haveria mais liberdade e tal. Depois eu vi que aquilo tudo foi uma safadeza de políticos misturados com banqueiros ingleses e americanos, e comecei a atacar. Mas eu continuo a querer mais liberdade e melhor vida ao povo do Brasil. Só que agora eu aprendi a maneira de conseguir tudo isso e não cair mais em conto do vigário, que é o que foi a tal Revolução Constitucionalista.
Álvaro - Você vive pensando em gente pobre, em liberdade, nessa historiada toda. Eu não posso compreender como é que um sujeito moço como você, com 19 anos, se mete nessas coisas todas. Deixe disso. Cada pessoa que trate de sua vida. Quem quiser ter dinheiro é só trabalhar e pronto. Agora, os vagabundos, esses têm que ser pobres. Todo sujeito que tem dinheiro é porque trabalhou.
Carlos - Você, por exemplo...
Álvaro - Lá vem você com suas gracinhas. Eu não trabalhei mas papai trabalhou muito na vida toda.
Carlos - Sim, ele trabalhou um pouco. Mas vejamos quem trabalhou mais -ele ou os colonos da nossa fazenda.
Álvaro - Os colonos, é claro!
Carlos - E quem é que é mais rico?
Álvaro - Você tem cada uma. Papai, está visto.
Carlos - Quer dizer que os colonos trabalham muito e são pobres e papai trabalha pouco e é rico. Donde se conclui que você não tinha razão quando disse que todo sujeito que trabalhar enriquece. Os colonos da nossa fazenda trabalham pra burro e quem enriquece é papai.
Álvaro - Mas papai é culto, esteve numa escola de agronomia nos EUA.
Carlos - Por que é que os colonos não foram para os Estados Unidos?
Álvaro - Você tem cada idéia. Porque não têm dinheiro.
Carlos - E por que é que eles não têm dinheiro?
Álvaro - Assim nós nunca acabamos e isso já está chato.
Carlos - Eu lhe explico por que eles não têm dinheiro. Eles não puderam guardar nada, porque eles é que pagaram com seu trabalho a ida do papai aos Estados Unidos, e são eles ainda que pagam os meus estudos e todo esse uísque que você toma com a tal Lula e o tal Lauro que é uma indecência.
Álvaro - Isso é um desaforo. A cada momento, por qualquer coisa, você ofende meus amigos. E eu nunca me importei com o que você traz aqui em casa, como aqueles sujeitos mal-encarados, mal vestidos, que até me fazem nojo. Eu nunca disse nada. E você não perdoa um momento as minhas relações.
Carlos - Mas você está se tornando idiota. Você quer comparar os seus amigos, a começar pelo degenerado, com os rapazes que vêm aqui? Esses moços dos quais você diz que tem nojo são jovens operários que recebem uma miséria e é por isso que são mal vestidos. Mas são sujeitos que estudam e lutam por uma vida melhor para todo o povo. Alguns são verdadeiros heróis na luta que mantêm contra nossos inimigos. Arriscam a vida, perdem a saúde, mas continuam firmes, com uma fé, uma sinceridade e uma lealdade impressionantes. Você precisa ver, Álvaro, que é uma indignidade de sua parte, que é uma sujeira você dizer isso desses meus amigos.
Álvaro - Você quer saber de uma coisa? Eu estou vendo que o que dizem por aí de você é verdade. Você anda por aí metido com essa gente suja, com essa canalha que é contra nós todos, que é contra a família, que é contra Deus, que é contra a pátria. Bem que o Lauro me disse que você era extremista.
Carlos - Lá vem você repetindo essa burrice de extremismo. E você fique sabendo que eu prefiro viver com essa gente suja, com essa canalha de que você fala, do que defender a família lançando mocinhas pobres na prostituição, orar a Deus sendo pederasta ou honrar a pátria tomando cocaína e passando as noites nos bordéis, que é o que fazem esses seus amigos que escrevem nos jornais, que falam no rádio e discursam nas câmaras.
Álvaro - Chega!
Carlos - Chega mesmo! Se não eu acabo vomitando de nojo de você, meu irmão. Porque você está militando ao lado de uma classe de gente que apodrece, e você está apodrecendo também. Já se nota na sua cara o aparecimento dos primeiros sintomas de sua decomposição...
Álvaro - Carlos!
Carlos - Da sua decomposição orgânica, porque o seu moral já está gasto...
Álvaro - Eu não permito que você diga isso de mim.
Carlos - Pois eu digo. Não é o fato de você ser meu irmão que me impedirá de dizer que você se transformou num canalha.
Álvaro - Carlos!
Carlos - Num canalha.
Álvaro - Você vá à merda com todas essas suas causas. Não sou criança, sei o que faço, sei arranjar meus amigos, e não aceito ordens de ninguém.
(Retira-se para um canto.)
João, oh, João.
João - Senhor.
Álvaro - Me arranje um banho e prepare o meu terno branco. Já.
João - Sim, senhor.
Álvaro - Anda logo. (João sai apressado.)
(Álvaro olha para Carlos um instante, morde os lábios e retira-se.)

2º ato

Uma voz - Uma semana depois...
Carlos - João, oh, João.
João - (entrando) Sim senhor. Bom-dia.
Carlos - Como vai você? Sarou sua dor de cabeça?
João - Felizmente, sarei, sim senhor.
Carlos - Como é, o Álvaro não apareceu ainda?
João - Apareceu, sim senhor. Chegou hoje de madrugada. Eu estava dormindo, acordei ouvindo um barulho. Levantei e encontrei "seu" Álvaro estendido no chão de comprido e vomitando. Eu ajudei ele se levantar. Tava fedendo bebida e todo sujo. Levei pro quarto onde ele se atirou na cama sem dizer nada. Agora pouco eu estive lá. Tá roncando.
Carlos - O Álvaro está exagerando, João.
João - Tá mesmo. Antes ele fizesse como o senhor. Em vez de andar por aí com essa gente esquisita, o senhor pensa na gente, nos pobres, nos coitados que nunca tiveram nada.
Carlos - (levanta-se e abraça João.) Vocês merecem tudo.
(Ouve-se a voz de Álvaro cantando.)
Carlos - Lá vem ele.
Álvaro - Bom-dia.

Carlos - Bom-dia.
Álvaro - Antes de mais nada eu lhe peço que você não repita a cena de outro dia.
Carlos - Não. Hoje eu não digo nada. Mas, apesar do seu estado adiantado, eu ainda lhe direi muita coisa.
Álvaro - Estado adiantado de quê?
Carlos - De decomposição. Mas por ora tratemos de outro assunto. Hoje vem um amigo meu estudar um pouco e jantar conosco. Você quer avisar ao João quando eu sair, sim?
Álvaro - O Lauro vem também jantar aqui hoje.
Carlos - Muito bem. Terei uma boa oportunidade.
Álvaro - Por quê? O que é que você pretende fazer?
Carlos - Estudar esse Lauro, eu o conheço ligeiramente. Parece ser um caso muito interessante.
Álvaro - Ué, mas você achava esse sujeito perigoso.
Carlos - Perigosa também é a lepra, mas não será por isso que a gente deva fugir dela. Ao contrário, a gente deve se aproximar, tomando todas as providências, é claro, para não se contaminar, e estudar cuidadosamente o mal, a fim de que se descubra suas causas e consequentemente possa se cuidar de sua cura.
Álvaro - Quer dizer que você vai tratar do Lauro como se ele fosse um doente e você um médico?
Carlos - Não é só a ele é que eu trato assim. A você e quase todos seus amigos também. Nós fazemos parte de uma classe, a burguesia, que chega ao seu fim, que está em estertores. Parte dessa classe se decompõe na farra, vive nos prostíbulos e cabarés... Outra parte pretende defender-se e adianta o fim da burguesia por meio de uma férrea ditadura. São as várias formas de reacionarismo congregadas e representadas aqui no Brasil pelo integralismo. E finalmente uma outra parte da classe moribunda, essa a menor de todas, lança-se na luta ao lado do povo. Você e o Lauro são representantes típicos da primeira parte, a que chafurda nos cabarés. E eu de certa maneira pertenço à última, a que se põe ao lado da revolução.
Álvaro - Você já fala em revolução. Que negócio é esse em que você anda metido? Você só fala por alto nessas coisas. Explique-me um pouco mesmo isso.
Carlos - Pois não, Álvaro, e eu fico contente por ver você uma vez na vida interessado por isso. Trata-se do seguinte: o Brasil atual está servindo de pasto à luta de dois imperialismos rivais, o inglês e o norte-americano. Tendo-se em vista essa luta...
Álvaro - (Olha para o relógio.) Carlos espere um instante. Outra ocasião qualquer você me explica. Tenho agora de ir buscar o Lauro para ele vir jantar. Marquei encontro com ele na cidade. Eu aviso o João que vem gente para jantar. Adeus. (Sai assobiando)
Carlos - (Tristemente.) É, não adianta mesmo. Há momentos em que eu ainda tenho alguma esperança. Mas qual, o Álvaro está mesmo um sujeito esculhambado. Creio que não tem salvação. É pena. (Pausa) Está na hora do Ruy chegar. (Pega um livro. Daí a pouco batem palma.)
É o Ruy. (Levanta-se para atender.)
Carlos - Olá, Ruy, como vai você?
Ruy - Esplendidamente num sentido, pessimamente noutro.
Carlos - O que é que há?
Ruy - Os salários foram abaixados lá na minha fábrica. Creio que não posso mais sustentar minha mãe e minha irmãzinha que está no grupo escolar. Mamãe precisa voltar para o trabalho da fábrica, e a menina tem que sair da escola para fazer o serviço de casa.
Carlos - Mas abaixaram o ordenado por quê? Não apresentaram os motivos?
Ruy - O gerente disse que era devido à crise. Que era uma medida de economia. Que, quando o dono da fábrica chegasse, ele explicaria melhor o motivo.
Carlos - E o dono da fábrica, onde está?
Ruy - Está na Europa com a família, fazendo uma estação de águas em Vichy.
Carlos - Canalhas!
Ruy - Canalhas!
Carlos - E a coisa ótima, o que é?
Ruy - Ah! É o seguinte: apareceu lá na fábrica um rapaz formidável que entrou em contato comigo. Eu lhe contei que reuníamos aqui em sua casa um grupo de estudantes e operários, que estudávamos os meios de melhorar a vida do povo brasileiro. Ele se interessou muito e ficou de vir aqui comigo qualquer dia destes.

Continua à pág. 5-8

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